quinta-feira, 30 de setembro de 2021

LUZES NOTURNAS

Por Milton Rezende


 Com algumas luzes

que roubei do dia,

edifico um palco

e nele instalo minha alquimia.

 

Expliquei,

com meu silêncio,

a descendência do erro

e continuei sendo uma incógnita

para mim mesmo.

 

Observei,

com minha ausência,

a natureza mesma das coisas

e na aparência em que elas se apoiam

sem contudo deixarem de ser neutras.

 

Passei despercebido

pelos camarotes

e toquei fogo

na indumentária

dos figurantes.

 

Depois deixei o palco,

circunspeto com as luzes

que teciam o óbvio de seu lume

para uma plateia inexistente.

 

E quando o dia incorporou

as poucas luzes que dele roubei

com sua claridade geral,

eu percebi o equívoco

de minha mágica noturna

ao acordar sozinho no vestiário.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

ALGUNS HOMENS


   Por Milton Rezende


 Aqueles que esperam

que todos durmam

para então se revelarem

no escuro do mundo

agora despovoado

de leis e de homens

que foram fatigados

pela batalha diária

de se ganhar dinheiro

e etcetera e coisa.

Aqueles que se recolhem

quando todos já acordados

recomeçam o ciclo da vida

subitamente interrompido

para o ensaio da morte

e que assim em movimento

não percebem os sonhos

espalhados na noite

por gente incógnita

que digere o mundo

para o sustento possível

de uma impossível unidade

comum a todos os homens.

Aqueles para quem só é viável

o diálogo com os mortos

cuja imobilidade revela a calma

do que antes fora ânsia

ou simples impulso de debate

contra uma série de coisas

que só se percebe neutras

depois que se morre.

Aqueles seres anônimos

que constroem uma realidade

paralela à admissível pelo dia

e que não obstante

substitui o espaço de tempo

necessário ao aprimoramento dos homens

até que se consiga

a hipotética convergência da raça

afinal reconciliados em espécie e sub.

Aqueles que com seus hábitos

são uma curiosidade para todos do circo

e um enigma para si mesmos, palhaços

sem plateia e sem palco nesta vida.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

A VOZ DO SILÊNCIO


Por Milton Rezende


Estou acordado

e não sonho,

mas a realidade

antecipada

me envolve.

 

A barba se me

desprende do rosto

fio-a-fio num frio

maior onde estou

me enregelando.

 

Tudo se dissolve

na aparência de ossos

de que fui formado,

e que é minha forma

mais resistente no mundo.

 

Mas a terra

(com seus vermes)

decompõe ao seu contato

todo o meu aprendizado

doloroso da vida.

 

E uma cova me absorvendo

transforma tudo o que fui

num triste resumo de pó

que um dia se chamou homem.

 

E que lhe deram um nome

(que tive), mas que a terra

aterra no tempo o traço

nominal dessa efemeridade.

domingo, 26 de setembro de 2021

À SOMBRA DA MORTE


 Por Milton Rezende

 

Estou saindo de mim

estou me afastando

de um ponto-refúgio

onde eu pudesse talvez

me excluir da chuva.

 

Transbordo-me às vezes

assim como às vezes se

transborda um reservatório.

E espalho estilhaços de mim

para todos os lados, em torrentes.

 

Quero deixar nas pessoas

(como o legado de um deus decaído)

uma série de impressões diferentes

e todas elas – como eu – falsas,

que é para sermos esquecidos.

sábado, 25 de setembro de 2021

ANTECEDENTES


 Por Milton Rezende

 

As telhas daquela casa

na outra margem do hipotético sonho,

me deixavam intrigado.

 

Saltei o riacho,

e penetrando nos quartos vazios

não distingui neles as sombras

que posteriormente viriam ocupar

todo aquele espaço em construção.

 

Quebrei a rotina da procura exterior

mas não consegui ocultar o medo

da noite que estava se delineando,

com suas negras fotografias

prestes a se revelarem.

 

Depois de muito tempo

em que minhas emoções se dispersaram

na procura de uma porta que não havia,

eu compreendi o meu equívoco

e gritei em todos os sentidos

que a noite se tornara impraticável.

 

Mas adormeci calado

e sem obter resposta.

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

ANDARILHO


 

Por Milton Rezende

 

O vento sopra um frio doido e esquisito

na curva da esquina de um terreno baldio.

Estou entre sapos e grilos e entulhos de lixo,

atrás de um muro quebrado e com muitos cacos

de vidro onde me escondo dos meus inimigos.

Apaguei todas as luzes da esperança

e estou sendo mordido por cachorros de rua.

“Atualmente eu vivo rodeado por minhas

paixões defuntas”. Todas inclusive,

menos uma delas: a paixão do absoluto.

Ando sozinho pelas ruas de bairros e ouço:

(você quer pegar os balões? Coitado, mas

eles são feitos de sonhos que estão muito

acima da sua compleição). Talvez nunca,

quem sabe, mas eu acabei de comer agora

uma casca de pão e um pedaço de linguiça

como tira-gosto da pinga. Houve uma época

distante em que eu comia arroz e tomate

nos degraus da escada de uma igreja no alto.

A vida estava lá embaixo, mas havia pessoas comigo.

Hoje eu quero morrer sem contar pra ninguém que eu fiz isso.

 


quarta-feira, 22 de setembro de 2021

PROVA


 Por Milton Rezende


a equação da vida

não bate nunca

porque sempre haverá

no mínimo dois

lados para olhar,

dois modos de contemplar

e duas perspectivas

a anularem-se.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

ACROBATA

 Por Milton Rezende


um pessegueiro roxo

braços em formas de garras

dedos intumescidos

pernas retesadas.

 

quando estamos dormindo

tudo parece fácil:

pé fora da cama

e acrobacia de quedas.


segunda-feira, 20 de setembro de 2021

A VISITA


Por Milton Rezende


De súbito a chuva cessou.

Ponho-me a escrever sobre ti,

criatura sem carne

que me visita.

 

Não sei de onde vens,

mas sempre chegas

nas horas mais extenuantes

de minha fuga.

 

Fecho portas e janelas

para não te permitir

livre acesso sobre mim,

que de cansado me basto.

 

Mas tu me vens sem ser chamada

e mesmo sem chegar em forma clara,

sei que és minha consciência,

e te incorporo.

domingo, 12 de setembro de 2021

DEPOIMENTO

 tão importante quanto publicar é a divulgação e a distribuição do livro, e esse é o grande desafio colocado para autores e editores. Não basta ter qualidade literária e publicar, é importante fazer o livro chegar ao leitor e é preciso que ele seja lido pelas pessoas. Houve um tempo em que era muito difícil a publicação de um livro, sobretudo de poesia. Foi mais ou menos na época em que eu comecei, na década de 1980. A única alternativa era o autor bancar os custos da edição e depois ficar com todos aqueles exemplares encalhados em casa por muitos e muitos anos. Hoje é um pouco diferente: com o advento e a popularização da internet e agora também com as editoras por demanda, publicar já não é mais aquele bicho de sete cabeças. O difícil é o escoamento da produção e fazer com que o produto seja “consumido” pelo público leitor, numa palavra, o difícil é justamente esse público leitor e como chegar até ele. Confesso, sinceramente, que não sei como fazê-lo ou fazê-lo de uma forma eficiente.


sábado, 11 de setembro de 2021

A ILHA

 



Por Milton Rezende


A ilha com seu silêncio

me comunica a morte

dos seres espectrais

que nela vivem ou já viveram.

 

A ilha cercada por mangues

é um poço de lama e óleo.

 

Os pescadores da ilha

me comunicam o fim

dos pescadores da ilha.

 

Os pescadores da ilha

me apresentam a pesca de um dia,

nada.

 

A ilha com sua morte

me comunica o silêncio

dos seres superiores

que a mataram e matam.

 

A ilha abandonada pelos banhistas

é um deserto de espuma e água.

 

Os frequentadores da ilha

me comunicam o desastre

das praias da ilha.

 

Os frequentadores da ilha

me apresentam o bronzeado de um dia,

petróleo.

 

A ilha com sua sorte

me comunica o crime

dos seres continentais

que seguem impunes.

 

Os pescadores da ilha

me comunicam o fim dos peixes

e voltam tarde para casa.

 

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

A LUMINOSIDADE ATRAVÉS DA JANELA

 

    


Por Milton Rezende

 

Faz alguns anos

que eu estou

do lado de fora

observando o

movimento.

 

Do ponto de

onde eu estou

vejo a luminosidade

de uma janela

no 2º pavimento.

 

Todos os dias

de um ponto neutro

de observação

eu vejo o que seria

a rotina da família.

 

Percebo os vultos

que se locomovem

dentro da casa

numa harmonia

pressentida.

 

Tarde da noite

alguém chega

até a janela

e fecha as cortinas

de persianas.


Minutos depois

a lâmpada foi

apagada dentro

do casulo de seda

visto pelo lado de fora.

 

Faz alguns anos

que eu estou

observando

a luminosidade

do ângulo externo.

 

E quando eu subo

as escadas encontro

a porta fechada.

 

 


domingo, 5 de setembro de 2021

BALÉ

 


Por Edson Bráz da Silva

 

Cubro o meu corpo

com a melodia que agora ouço

Embevecido

danço como se o mundo

fosse um palco

ou um salão de baile

finda a música e

despido pelo silêncio

cubro minha vergonha

com minhas inúteis mãos

Cabisbaixo

procuro refúgio nos cantos

nas gretas e grutas

Todos me olham, piedosos

Todos me sorriem, complacentes

Nem uma sombra para cobrir-me

desses olhares, desses sorrisos

Apenas minhas inúteis mãos

Apenas eu

Mas, começa uma nova canção.

 

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

ANÍMICA

 


Por Milton Rezende

quando eu tinha todos os movimentos

eu era sol entre nuvens

aves de arribação

qualquer coisa de menos sólida

por haver.

eu via cachoeiras em meus sonhos

remanso de rios

pedra grande de sentar menino

florestas a esculpir.

 

Poema inédito do livro igualmente inédito “Da Essencialidade da Água”

 

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

ALÉM DAS CINZAS

 


Por Edson Bráz da Silva

 

Diluir

ao se embrenhar no nada

 

Nada

que não seja definitivo

 

Definhar

e suscitar a própria erosão

numa autofagia geológica

- uma geologia sem lógica

imaterial

 

Os resíduos deverão ser incinerados

já que dejetos não têm jeito

só defeitos

 

E

além das cinzas

restará então

apenas um odor

um fedor

 

Apenas a dor.