segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

SOMBRAS

 Por Milton Rezende

                 Vem de antes a consciência da dúvida de eu estar aqui e representar alguma coisa para além de mim. Sigo o percurso de volta para casa e é ali, onde os caminhos se bifurcam, que tenho a certeza de estar sozinho na noite imensa.

            Deixei alguns propósitos que eu tinha e adotei outros que nem sequer conheço a razão de eles serem e no que vão dar, mas preciso manter as mãos ocupadas para não pensar sobre a inutilidade delas. Preciso encher a cabeça de sonhos para que ela não se perca no abismo de si mesma.

            Vontade de poder ser eu e não ter que dissimular a minha incapacidade em astúcia. Gostaria de não estar de frente com a minha condição de estar ao lado. Poder gritar a verdade subitamente rejuvenescida por uma presença que a estimula, mas me faço calar no peito. Tenho certeza do medo que eu tenho mas não tenho medo dessa certeza. Só um cansaço de ela ser real e irrevogável.

            Vem de antes essa solidão de mim fechada numa ausência. Uma ausência que procura compensar a sua falta na exarcebação de um ego que mal se satisfaz. Houve em mim um tempo em que houve destino ou pelo menos uma crença nele. Havia a ideia de que a simultaneidade um dia poderia ser-me útil no que hoje ela tem de peso e grades humanas.

            A felicidade ainda não era uma lembrança corroída pela sua impossibilidade. Muitas vezes nem era tanto pela falta de perspectivas, em que a vida se entremostrava como uma vaga imagem, mas pela minha cegueira de distinguir nos fatos uma possibilidade nítida. Eu acreditava que a vida fosse parcelas que iam se incorporando ao contato do amor e que um dia teríamos uma dimensão mais completa, mas cedo aprendi que nos alimentamos de nós mesmos até a exaustão de nossa precariedade.

            E hoje, fechado num quarto público sem paredes, eu tenho apenas o silêncio vazio e uma mágoa secreta de mim mesmo. Uma mágoa de eu não poder ser nunca aquilo que não posso ser. Constato enfim a inexorabilidade do meu tédio e este amor a fazer-me furos na alma de eu contê-lo só em mim. Preciso fugir porque não posso mais me sustentar num arcabouço de desespero implícito. Sei que não posso dormir com esta culpa e fico ruminando uma sequência interminável de erros reincidentes. Tenho que retirar minhas esperanças das muletas de sonhos onde as coloquei e aprender a caminhar sem pernas. Vejo, sem os disfarces alegóricos, a situação real de eu não ter atributos próprios para me suprir.

            Deitado na cama de uma calçada eu fito o teto de um quarto desejado onde eu poderia estar se ele existisse. Há uma sombra de mulher em meu sonho e o amor que eu tenho quer ter vida própria. Deixo-o sair e tentar sem mim o que não conseguimos estando juntos, mas ele volta esfacelado de andar sem rumo e nos abraçamos em angústia de não poder ser, de não poder ser assim.

            Às vezes a sombra do meu sonho é real, mas meus olhos estão na penumbra de não saber isso. De não poder saber isso até que o dia amanheça e dissipe o equívoco. As árvores elétricas da cidade apagam os seus frutos de luz.

            Na confusão de uma noite mal dormida, dirigo-me à central de meu tédio e corto minhas mãos. Mas elas, incansáveis em seu conhecimento de mim, continuam na trilha de uma fuga onde eu possa esconder o meu fracasso de ser eu. A mulher real, de uma janela real, dirige-me um sorriso de complacência, mas já não tenho mãos para abraçá-la. Vejo-a nitidamente perto e impossível e sorrio também, na ternura de uma vida devotada ao silêncio. Sei que estou longe de estar aqui.