Por Milton Rezende
Vem de antes a consciência da dúvida de
eu estar aqui e representar alguma coisa para além de mim. Sigo o percurso de
volta para casa e é ali, onde os caminhos se bifurcam, que tenho a certeza de
estar sozinho na noite imensa.
Deixei
alguns propósitos que eu tinha e adotei outros que nem sequer conheço a razão
de eles serem e no que vão dar, mas preciso manter as mãos ocupadas para não
pensar sobre a inutilidade delas. Preciso encher a cabeça de sonhos para que
ela não se perca no abismo de si mesma.
Vontade
de poder ser eu e não ter que dissimular a minha incapacidade em astúcia.
Gostaria de não estar de frente com a minha condição de estar ao lado. Poder
gritar a verdade subitamente rejuvenescida por uma presença que a estimula, mas
me faço calar no peito. Tenho certeza do medo que eu tenho mas não tenho medo
dessa certeza. Só um cansaço de ela ser real e irrevogável.
Vem
de antes essa solidão de mim fechada numa ausência. Uma ausência que procura
compensar a sua falta na exarcebação de um ego que mal se satisfaz. Houve em
mim um tempo em que houve destino ou pelo menos uma crença nele. Havia a ideia
de que a simultaneidade um dia poderia ser-me útil no que hoje ela tem de peso
e grades humanas.
A
felicidade ainda não era uma lembrança corroída pela sua impossibilidade.
Muitas vezes nem era tanto pela falta de perspectivas, em que a vida se
entremostrava como uma vaga imagem, mas pela minha cegueira de distinguir nos
fatos uma possibilidade nítida. Eu acreditava que a vida fosse parcelas que iam
se incorporando ao contato do amor e que um dia teríamos uma dimensão mais
completa, mas cedo aprendi que nos alimentamos de nós mesmos até a exaustão de
nossa precariedade.
E
hoje, fechado num quarto público sem paredes, eu tenho apenas o silêncio vazio
e uma mágoa secreta de mim mesmo. Uma mágoa de eu não poder ser nunca aquilo
que não posso ser. Constato enfim a inexorabilidade do meu tédio e este amor a
fazer-me furos na alma de eu contê-lo só em mim. Preciso fugir porque não posso
mais me sustentar num arcabouço de desespero implícito. Sei que não posso
dormir com esta culpa e fico ruminando uma sequência interminável de erros
reincidentes. Tenho que retirar minhas esperanças das muletas de sonhos onde as
coloquei e aprender a caminhar sem pernas. Vejo, sem os disfarces alegóricos, a
situação real de eu não ter atributos próprios para me suprir.
Deitado
na cama de uma calçada eu fito o teto de um quarto desejado onde eu poderia
estar se ele existisse. Há uma sombra de mulher em meu sonho e o amor que eu
tenho quer ter vida própria. Deixo-o sair e tentar sem mim o que não
conseguimos estando juntos, mas ele volta esfacelado de andar sem rumo e nos
abraçamos em angústia de não poder ser, de não poder ser assim.
Às
vezes a sombra do meu sonho é real, mas meus olhos estão na penumbra de não
saber isso. De não poder saber isso até que o dia amanheça e dissipe o
equívoco. As árvores elétricas da cidade apagam os seus frutos de luz.
Na
confusão de uma noite mal dormida, dirigo-me à central de meu tédio e corto
minhas mãos. Mas elas, incansáveis em seu conhecimento de mim, continuam na
trilha de uma fuga onde eu possa esconder o meu fracasso de ser eu. A mulher
real, de uma janela real, dirige-me um sorriso de complacência, mas já não
tenho mãos para abraçá-la. Vejo-a nitidamente perto e impossível e sorrio
também, na ternura de uma vida devotada ao silêncio. Sei que estou longe de
estar aqui.
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