quinta-feira, 3 de outubro de 2024

CASA - edição bilíngue


 

Casa [Carlos Drummond de Andrade]


Há de dar para a Câmara,
de poder a poder.
No flanco, a Matriz,
de poder a poder.
Ter vista para a serra,
de poder a poder.
Sacadas e sacadas
comandando a paisagem.
Há de ter dez quartos
de portas sempre abertas
ao olho e pisar do chefe.
Areia fina lavada
na sala de visitas.
Alcova no fundo
sufocando o segredo
de cartas e baús
enferrujados.
Terá um pátio
quase espanhol vazio
pedrento
fotografando o silêncio
do sol sobre a laje,
da família sobre o tempo.
Forno estufado
fogão de muita fumaça
e renda de picumã nos barrotes.
Galinheiro cumprido
À sombra de muro úmido.
Quintal erguido
em rampa suave, flores
convertidas em hortaliça
e chão ofertado ao corpo
que adore conviver
com formigas, desenterrar minhocas,
ler revista e nuvem.
Quintal terminando
em pasto infinito
onde um cavalo espere
o dia seguinte
e o bambual receba
telex do vento.
Há de ter tudo isso
mais o quarto de lenha
mais o quarto de arreios
mais a estrebaria
para o chefe apear e montar
na maior comodidade.
Há de ser por fora azul 1911.
Do contrário não é casa.

[Boitempo I]

 Carlos Drummond de Andrade

 

CASA

(traducción del portugués por Benjamín Valdivia)

 

Ha de dar hacia la Cámara,

de poder a poder.

En el flanco la iglesia mayor,

de poder a poder.

Tener vista a la sierra,

de poder a poder

Balcones y balcones

gobernando el paisaje.

Ha de tener diez habitaciones

de puertas siempre abiertas

a la mirada y al pasar del amo.

Arena fina lavada

en la sala de visitas.

La alcoba en el fondo

sofocando secretos

de cartas y baúles

herrumbrosos.

Con patio

casi español vacío

empedrado,

fotografiando el silencio

del sol sobre la losa,

de la familia sobre el tiempo.

Horno caliente,

fogón de mucha humareda

y un encaje de hollín allá en las vigas.

Gallinero elevado

a la sombra de la pared húmeda.

Jardín que se alza

en rampa suave, flores

convertidas en hortaliza

y suelo ofrecido al cuerpo

que guste convivir

con hormigas, desenterrar lombrices,

leer revista y nube.

Corral que acaba

en pastos infinitos

donde un caballo espere

el día siguiente

y el hato de bambú reciba

telegramas del viento.

Ha de tener todo eso

más el cuarto de la leña

más el cuarto de los arreos

más el establo

donde pueda apear y montar el amo

con la mayor comodidad.

Ha de ser por fuera

azul 1911.

De lo contrario no es la casa.

 


quarta-feira, 18 de setembro de 2024

VIAGEM AO CENTRO DA NOITE


 

ao Airton Ferreira, em memória de nossas noites bêbadas


A noite chegou tão sorrateira que encobriu as casas sem o menor espanto dos que nelas habitavam. Apenas um menino franzino compreendeu as reticências noturnas. Mas ele sempre as compreendia assim, envolto em uma perplexidade medrosa que se intensificava à medida que a tarde ia se dissolvendo. Sempre quando os sinos da igreja matriz anunciavam as já tão rotineiras ave-marias, ele se detinha inquieto e triste. Uma tristeza esquisita, é certo, contudo real e inexplicável como o próprio homem em sua vida diária, equivocada. Seu semblante, agora calmo, escorre toda uma aventura cega, não obstante polvilhada de imagens que se aspiram ser independente do escuro, das faces inertes que a noite perpetuou nas estradas (em cujas porteiras há uma tremenda angústia impregnada em suas tábuas inúteis). Uma vez espalhado o medo é desnecessário tomar este atalho cheirando a capim-gordura, onde se escondem sapos e grilos anulados em si mesmos diante do desengano de uma existência rasteira em que cruzam homens e animais em busca de abrigo, água e comida após um longo dia de trabalho nas lavouras, nas olarias que margeiam o trilho negro por onde corre a civilização embriagada de si mesma ante a edificação de um templo coletivo onde se dará a consumação do próprio vazio, num vazio maior trabalhado na ilusão de se libertarem do nada. Também a vida humana carece de um sentido intrínseco, disse-me a lua no mesmo instante em que estalava no asfalto, dando-lhe um aspecto a um só tempo assassino e suicida. O que é viver acuado diante da própria imagem que se desconhece, por uma pretensa ingenuidade que viria redimir o homem perante sua ignorância de si mesmo e dos objetos que ele julga dominar? Dói em mim uma imensa vontade de chorar toda esta perda. Gritar. Dizer a todos do medo descomedido diante do iniludível que os mortos tão bem o sabem. Buscar consolo, se já não é possível uma explicação, para acontecimentos absurdos como a morte e a perda definitiva da paixão. E o mundo todo se sintetiza em mim que o estou chorando. Mas a voz do silêncio através do hálito da noite me comunica apenas a sua voz de silêncio. Este mesmo silêncio que forma a tessitura das horas onde me perco, pensando em todos aqueles que na simbiose imaginária do momento também estariam olhando através da vidraça o limitado horizonte de nossas vidas destroçadas. E sonhar com esta possibilidade alheia e coletiva é já fazê-la incorporar-se ao meu pranto de homem, que assim se suaviza. A chuva prossegue e com ela o meu intuito de esclarecer a noite ou esclarecer a mim mesmo dentro desta noite que já me escapa. E na solidão ácida deste instante apenas os meus olhos percorrem a vastidão do mundo e o mistério desta pequena cidade que não decifro. Adormeço afinal com os olhos pregados num ponto qualquer de uma memória extracorpo que não tenho e que se tivesse, certamente ali seria o meu refúgio, ainda que não o pudesse alcançar.

 



domingo, 15 de setembro de 2024

TEXTO DE WHISNER FRAGA PARA A ORELHA DE "DA ESSENCIALIDADE DA ÁGUA", LIVRO DE MILTON REZENDE


 

o que o poeta tem a declamar após o coma?, o moto perpétuo da realidade lhe roubando o devaneio e impondo, brutalmente, as sequelas?, o poeta ainda conseguirá criar?, esmiuçará os traumas universais em versos engenhosos?, voltará a escrever?, é imerso nesta angústia, que milton rezende, tateando os aromas da dúvida, tenta recomeçar a tecer uma obra, ainda que o corpo vacile diante da monstruosa tarefa de continuar, é preciso purificar a palavra, em um ato íntimo de desafio: o poeta está afiadíssimo: içou a ironia pelo colarinho, domesticou a dor rediviva, a morbidez da inconsciência, até encontrar lovecraft, até se refugiar em heróis oníricos, fantasmagóricos e, ainda assim, reais: a suspensão da existência, os olhos reavendo outras ficções até desembocarem novamente na trégua, reimaginarem as banalidades cercando a resistência que pulsa, essas águas que jamais foram as mesmas, nunca serão, o líquido ocupa tudo, com seu curso que invade, pilha, toma, ocupa: o poeta tomará quantos remédios por dia?, quantos comprimidos empurrados corpo abaixo?, o poeta regressará às burocracias de antes?, quanto tempo resta antes de se revoltar, novamente?, porque trouxe os vestígios de outra cosmogênese, serenada pelo conforto de fármacos, de injeções, de terapias, uma lista de enfermidades e procedimentos tão absurda que trazem em si o embrião da poesia, o lirismo da incongruência, como enxergar de outra forma o que sempre foi caos?, o médico lhe revelará a intimidade de uma paz sem serventia?, milton rezende aflora às margens de um mundo idílico, transmutado, inacessível e se insurge contra ele com sua realidade brutal, desesperançada, empunhando palavras aceradas, como se só lhe restasse isso a fazer: a arte é um fardo.

 

whisner fraga

 

(*) 0relha do livro “Da Essencialidade da Água”,  publicado pela Editora Sinete, 2024

sábado, 14 de setembro de 2024

A LUA ESCURA


 

 “se soletra L-U-A”

 

sabe,

há um momento

em que a lua

fica escura.

 

é quando,

a escuridão maior

vinda dos montes

cobre a Rua Fácil.

 

e tudo,

vira um só quadro

negro, uma lousa

fria que antecede

a morte.

 



sexta-feira, 13 de setembro de 2024

SINAL DOS TEMPOS


A ponte sobre o rio

morto. Morto

o pássaro no fio

cio sem fonte

de animais extintos.

 

A peste sobre o peixe

ausente. Ausente

as plantas de enfeite

sede sem água

de cobaias em teste.

 

A praga sobre a cidade

atônita. Atônita

a Amazônia em fogo

jogo sem sorte

de árvores indefesas.

 

O prédio sob os escombros

nucleares. Nucleares

os filhos da espécie

prece sem remédio

de homens mutilados.

 

 



quinta-feira, 12 de setembro de 2024

CORPO

 


 

foi preciso

que eu fosse

envelhecendo

para entender

(em parte) o

erotismo tardio

nos poemas de

Drummond.

 

é que precisamos

ir perdendo para

poder reconquistar.

é preciso ir morrendo

pra aprender a gostar

da vida e tentar

(quando não é mais possível)

usufruir da beleza da água

 

que acabou de passar.

 


quarta-feira, 21 de agosto de 2024

NOS LIMITES DA CIDADE


 

Na umidade das pedras

que configuram o fim da rua,

eu deixo a cidade com suas luzes

e embrenho-me no seu depósito de restos

batido pelo silêncio e o desdém dos vivos.

 

Atravesso com passos rápidos

os últimos vestígios onde se respira

e concentra a massa indistinta de seres

que comem carne e habitam em casas para

gerar filhos que conferem um breve hiato

ao fim da espécie que apodrece sob o barro.

 

Minhas botas estalam nas pedras

como o casco de um animal inútil,

e os últimos postes de luz elétrica

escarnecem o meu propósito de deixá-los

para além de sua tarefa de apaziguar

os homens em seu conforto precário.

 

Olho para os lados para certificar-me

de que estou sozinho e então salto sobre

o muro de grades onde repousam os homens

que também comiam carne e geravam os filhos

de uma espécie da qual já não fazem parte.

 

Aqui foram deixados todos aqueles

que um dia não comeram carne e se tornaram inúteis.

E estão esquecidos aqui aonde venho encontrá-los

com seus semblantes de velhos idiotas que acreditavam.

 

Percorro os túmulos que abrigam os mortos

e me detenho nos epitáfios deixados

por parentes que na cidade desprezam estes restos

só pela lembrança de um dia já os terem beijado

na volúpia da carne que agora fede.

 

Antes de deixar o cemitério

e os despojos de carne mal digerida

desses cadáveres abandonados,

eu toco com minhas mãos sem luvas

a massa liquefeita de seus corpos.

 

Depois volto para a cidade

e acaricio os rostos dos filhos

com o excremento fétido de seus pais,

para que eles ainda sem sintam membros

de uma mesma adorável família putrefeita.