sexta-feira, 23 de abril de 2021

Um cadáver que devora o seu próprio sudário

Por Milton Rezende

A não ser

Preciso voltar a escrever algo

algo em mim precisa escrever

mas o quê?

Se eu já disse tudo que tinha

a dizer?

Talvez tenha sido pouco,

eu sei,

mas foi o que eu podia fazer

Repetir é bobagem, decair,

envelhecer e morrer acusado

de dizer as mesmas coisas

para ninguém ler

Feedback nunca houve,

então eu é que não vou.

 

Goles de leveza

chás & cicatrizes

aromas em lata com

ferrugem

o intervalo do trajeto

entre o chão e o

travesseiro

melhor ser um homem

deitado que um andarilho

de joelhos, e bêbado.

 

Expurgo

hoje eu mordi

um chumaço de

papel higiênico

para estancar

(ou tentar conter)

o sangramento

da língua dilacerada:

como um cadáver

antecipado que devora

o seu próprio sudário.

 

Do livro Um Andarilho Dentro de Casa (Penalux, 2017).