sexta-feira, 23 de dezembro de 2022
sábado, 3 de dezembro de 2022
Revista O Bule: Revista O Bule & Textifique Soluções em Textos
quarta-feira, 9 de novembro de 2022
quinta-feira, 3 de novembro de 2022
NAS ÁGUAS DO RIO
Aquele
teu short de estrelas
não
saiu de minha constelação mental,
em que
eu te vislumbrava nítida e nua
e na
noite o teu perfume se misturava
aos
perfumes da noite, tornando-a impregnada
de um
conteúdo que era ao mesmo tempo
ferino
e feminino e ardente.
Lembrança
de água barrenta na boca
e o
teu corpo exposto que estava
ao
papel transparente do sol sobre o tecido.
segunda-feira, 24 de outubro de 2022
ANTOLOGIA POÉTICA - LITERÁRIA I
Finalmente
a ideia de se organizar uma “Antologia Poética” do poeta ervalense Milton
Rezende. Foram 7 livros de poesia
publicados no intervalo que vai de 1986 a 2017. Portanto mais de 30 anos de
estrada literária. Aqui, neste volume, estão reunidos 184 poemas bastante
expressivos e representativos do seu itinerário poético e escolhidos dentre
todos os seus livros publicados. Tendo, inclusive, quatro poemas inéditos do
livro igualmente inédito “Da Essencialidade da Água”.
O
critério escolhido para a seleção dos poemas foi o de usar como base o livro “Tempo
de Poesia: Intertextualidade, Heteronímia e Inventário Poético em Milton
Rezende”, de Maria José Rezende
Campos que disserta sobre a obra do autor e também em outras fontes e meios
literários no Brasil e alguns até no exterior que divulgaram seus trabalhos
poéticos. Portanto são poemas que já passaram pelo crivo e pelas análises de
outras pessoas, além do próprio autor.
Num
universo total que gira em torno de uns 410 poemas, esta coletânea apresenta mais
da metade de tudo que o poeta escreveu ao longo destas três décadas, portanto
um painel bastante representativo onde o leitor poderá encontrar uma amostra consistente
do que representa o legado deste escritor que é tido como uma espécie de
celebridade rural, quase desconhecida e escondido nas montanhas de Minas Gerais,
mas “de grande influência no cerco artístico-literário da Zona da Mata Mineira
na década de 1980, de onde, com certeza, é um dos principais nomes da
Literatura Contemporânea”(F.A.)
www.miltoncarlosrezende.com.br
segunda-feira, 3 de outubro de 2022
OUTRO SILVA IS DEAD
“saí para me divertir,
acabei num enterro.
um parente distante.”
(Dostoiévski)
Por Ferreira Jr. (*)
Eu não sabia até então. Sexta-feira de chuva fina e o colapso do mundo sendo alardeado por todos e em tudo quanto é canto. Desliguei-me das pessoas mais em função disso, pois preferia a visão das nuvens e dos pássaros que eu alimentava como se estivesse longe. Não estava. A realidade me cerceava e eu saí para encher a cara. Num pequeno beco sem saída havia um boteco e logo em frente o cemitério.
Entre um gole e outro passou o cortejo fúnebre e resolvi acompanhar. Durante o percurso fui informado que se tratava da morte de um sujeito conhecido como “Outro Silva”, aliás, pouco conhecido, a julgar pelo nome. Afinal são tantos silvas que um silva a mais ou um a menos não faria, àquela altura, muita diferença. Como se fosse um silvo no deserto.
Devido a esta singularidade do nome do defunto, resolvi acompanhá-lo até sua última morada e no trajeto tentaria saber mais sobre o cadáver. Entabulei conversação com um senhor de meia-idade que estava do meu lado, julgando que fossem parentes. Na verdade, só trabalhavam juntos num escritório mixuruca de contabilidade e redação de textos para jornais.
Alexandre Barret era o nome da pessoa com a qual eu falava. Indagado a respeito do falecido disse-me que o “Outro Silva” era um homem estranho como o próprio nome, mas davam-se bem no serviço diário onde se encontravam como empregados de um proprietário, que morava numa cidade distante e repassava as suas ordens por telefone ou por e-mail.
Numa dessas ordens foi que o “Outro Silva” se destacou, produzindo sob encomenda seu único texto re/conhecido: “Gênese de um nome e de um livro”, que acabou sendo publicado como apresentação ao livro “Textos e Ensaios”, do escritor mineiro Milton Rezende.
“Depois disso, apesar da pequena repercussão favorável aos seus escritos, não produziu mais nada que eu saiba e entrou assim numa espécie de recesso das ideias”, disse-me o Barret sobre o seu finado amigo, quando já ultrapassávamos o portão de grades da entrada do cemitério. Poucas pessoas acompanhavam o cortejo, pois atualmente já não se usa muito celebrar os rituais da morte e ela, esvaziada do seu contexto histórico, aninhou-se no subconsciente humano produzindo ali estragos ainda maiores de quando era uma senhora respeitada na sociedade.
A causa da morte do “Outro Silva”, conforme atestado de óbito assinado pelo médico plantonista, Dr. Carlos Águia, teria ocorrido em função de “insuficiência respiratória aguda, edema agudo do pulmão, infarto agudo do miocárdio e hipertensão arterial sistêmica”. Contava 47 anos.
Foi enterrado ao lado do finado Tibúrcio Soledade que, segundo consta, teria sepultado a si mesmo no quintal de sua própria casa numa crise de identidade. Mais tarde seu corpo foi transladado para este cemitério e agora jazem os dois em covas rasas, esquecidos de si mesmos e dos homens com os quais haviam convivido.
Despedi-me do Alexandre Barret na saída e uma vaga nuvem de tristeza rondava-me os olhos lacrimejantes. Voltei ao boteco do beco para celebrar a continuidade da vida num ninho de passarinho que eu vira construído no coqueiro ao lado do túmulo do “Outro Silva”.
Sobre a mesa do bar estava um exemplar do Diário de Notícias, estampando em letras garrafais a corrupção nossa de cada dia e a cara dos políticos escarnecendo das nossas caras de otários. Um sujeito passou na rua de carro e deu para acompanhar o refrão da música de rap que tocava através do pen drive: “era só mais um silva que a estrela não brilha”.
(*) Ferreira Jr. é um heterônimo de Milton Rezende
:
quinta-feira, 22 de setembro de 2022
OS SAMAMBAIAS CHORONAS - Trilogia III
Algumas pessoas me perguntam sobre o meu processo de
criação. Não sei bem o que dizer, mas digo que três fatores são essenciais:
método, disciplina e solidão. Geralmente elas concordam com os dois primeiros
itens e me questionam, sempre, quanto ao terceiro. Digo-lhes que este é o
décimo terceiro livro que escrevo ou do qual participo e que, com exceção dos
livros de poesia, que são a maioria e que é algo inexplicável, os demais
livros, em prosa, seguem este protocolo.
É
claro que depois do Fausto ter entrado em minha vida e ter roubado as minhas
histórias ou parte delas, alguma coisa mudou, mas a essência permanece a mesma.
Eu diria que sou um escritor de feriados prolongados, quando a casa está vazia
e você pode então se exercitar no método, na disciplina e na solidão que já
então é intrínseca.
No
meu caso, especificamente, conta o fato de eu e minha família estarmos
deslocados no espaço geográfico, bem como os meus vizinhos mais próximos, que
também não são daqui. Não tenho parentes e pouquíssimos amigos na cidade onde
moro. Nos feriados, cada um caça o seu rumo e o meu rumo como é distante ou
inexistente, permaneço aqui entre ovelhas de sonhos que cultivo em silêncio.
Não que eu quisesse, sempre, poder ir para a minha cidade natal. Até porque,
presentemente, eu não gostaria de morar lá. Mas ela é sempre uma referência, um
espaço a se conquistar, como aquele antigo amor que você sabe que nunca será
seu e que não obstante nunca deixa de te des/nortear a vida.
Outro
dia, num show de rock que eu e minha banda imaginária fizemos em nossa cidade,
alguém da platéia gritou que éramos o que de melhor havia e eu retruquei, do
palco onde eu estava então, que agradecia os seus elogios superlativos, mas que
na verdade eu não passava de um bêbado. E nisto consiste o meu método e a minha
disciplina: nos feriados prolongados, quando todos viajam, tranco-me em casa,
não sem antes me abastecer de cervejas, carnes, cachaças e filmes
pornográficos. A literatura e a música precisam ser reais, mas o sexo pode ser
virtual. Durante esses três ou quatro dias geralmente eu não ponho o focinho
para fora da caverna. Tranco tudo e é preferível que o telefone e a campainha
não toquem, como de resto não tocam mesmo, para que eu mantenha a minha
disciplina solitária. Como escrever, por exemplo, um romance com a televisão
ligada e com conversas e pessoas circulando pela casa? O recolhimento, mais do
que o silêncio, é fundamental, assim como é fundamental o egoísmo no ato de
escrever e que cada coisa esteja no seu devido lugar.
Então,
entre uma cerveja e outra eu escrevo. Entre uma cachaça e outra eu escrevo.
Entre um orgasmo e outro eu escrevo. Entre um alimento e outro eu escrevo. Sem
ter varrido a casa, sem ter lavado a louça, sem ter tirado a poeira dos móveis,
sem ter lavado a roupa suja, sem ter desentupido a pia da cozinha, sem ter
passado a roupa da semana anterior, sem ter lavado os banheiros, sem ter
passado pano molhado no piso, sem ter cozinhado o feijão, sem ter vivido o que
minimamente se entende por vida, sem ter visto ou falado com ninguém sequer ao
telefone. Preso ao abismo da tela do computador, desvinculado do mundo e alheio
a tudo o que seja externo ao desespero e às lembranças e à memória de um mundo
afinal inexistente.
No entanto é
fundamental que se tenha pássaros cantando e vasos de flores e peixes no
aquário e montanhas verdes que se estendam através da paisagem e que essas
montanhas sejam circundadas de árvores. E que os ônibus passem na estrada ao
longe, recortada pelo ângulo da janela e que não haja ruídos nem vozes de
gente. É claro que a solidão, a despeito do que se produz ou do que se deixe de
produzir, cobra o seu alto preço e a morte é um medo permanente e o sono
escasso e a fome negligenciada, assim como o corpo e a alma igualmente relegados
a um plano secundário e tantos outros inconvenientes, de tal modo que sorrio
sempre e com alívio quando afinal ouço a chave no cadeado do portão e Rita de
C. sobe pela escada da rotina afinal restabelecida. Mais uma vez fui salvo de
mim mesmo.
Milton
Rezende, in Textos e Ensaios, 2012
quarta-feira, 21 de setembro de 2022
HORÓSCOPO - Trilogia II
Outro dia, numa conversa sobre
velhos e asilos, descobri que Rita de C. também é formada em psicologia e parte
do seu encanto vem daí, do volume de conceitos e fundamentos que possui, como
adiposidades sexuais. Um dia ainda pretendo me meter entre suas nádegas e
aprofundar meu conhecimento sobre tatuagens, quando ela estiver viúva. Antes,
em seu consultório, ela me dirá se devo dar um tratamento literário às minhas
patologias ou se devo considerar minha literatura como patológica.
Francisco foi um tolo quando se enveredou pelo misticismo como forma de justificar os seus atos. Quis ver em tudo a mão suave do destino e deu de querer ler e acompanhar seu horóscopo. Ninguém comete um equívoco sem um motivo transcendental para si mesmo. Chegou até a colecionar previsões que endossassem suas atitudes, conforme ele me contou depois. Um dia o encontrei, bêbado e estropiado, com um pedaço de papel na mão. Uma folha arrancada de um caderno espiral cheia de anotações extraídas de jornais sobre o seu signo. Cobrem um curto período, não datado, em que ele diariamente acompanhava e anotava, montando um pequeno texto com vários e diferentes enxertos dessas previsões que, segundo ele, justificavam plenamente a decisão a ser tomada. Com isto julgou estar no caminho certo e quebrou a cara e agora me exibia o papel de sua ruína. Não vejo muita unidade nesse amontoado de frases e nem posso compreender como alguém possa ter embasado nelas uma decisão que mudaria o curso da sua vida. Ao invés da mão suave do destino ele encontrou o braço forte da desgraça. Coisas da vida e azar o dele que não leu A Cartomante. Transcrevo a seguir, a título de curiosidade, as anotações astrológicas e zodiacais do meu desafortunado amigo.
“Na vida amorosa ou na profissional,
podem surgir situações de prova ou desafio. Aproveite para treinar sua
capacidade de funcionar sob estresse. Cabeça fria e objetivos definidos serão o
seu escudo. A vitória acompanha quem tem melhor controle sobre si mesmo. Chega
um momento na vida em que não dá mais para preservar as coisas como estão e
que, correndo-se o risco de magoar pessoas ou destruir instituições, é melhor
fazê-lo do que continuar mantendo tudo como está. Tudo está melhor do que
parece, não tenha dúvidas a esse respeito. Todo esse tumulto, que muitas vezes
tem você no epicentro da situação, expressa, na verdade, a mão compassiva do
destino acertando o passo de tudo. Pronto para voar, virar o mundo de pernas
para o ar, se jogar nos braços do seu amor. Impulsos de se libertar, romper
antigos grilhões, tudo aquilo que vem se arrastando há eras. Você está se
abrindo, de lento caracol vira veloz borboleta. Tudo pode ser e acontecer:
link-se com sua alma. Uma decisão arriscada pode ser tomada hoje. Num tema
amoroso, vai funcionar melhor se você der o primeiro passo, agindo de maneira
segura. A surpresa e a segurança do que deseja é que irão garantir que você não
fique falando sozinho. E não seja impulsivo, para não provocar acidentes. Toda
a energia que você precisa para ser feliz está disponível e é absolutamente
gratuita. A vida não exige nada, oferece tudo. Exercite-se na arte de viver sem
depender de objetos ou dinheiro para garantir felicidade. Quando a mente fica
cheia de preocupações é mais difícil perceber os detalhes belos da vida. As
preocupações podem até ser reais, mas nada obriga você a se prolongar nelas.
Passe por elas o mais rapidamente possível. Dúvidas e incertezas do futuro,
como será o amanhã? É, pode ser difícil mover-se em chão desconhecido, trilhar
a imprevisibilidade, mas se você der uma boa olhada em sua história até aqui,
verá que não é a primeira vez que coisas muito boas aconteceram e que você se
descobriu mais forte quando a vida o surpreendeu. É imperioso que você renasça
das cinzas daquilo que se acostumou a chamar de ‘sua vida’. De fato, ela não
mais existe, é apenas uma reminiscência. A morte não é tragédia, é oportunidade
de transformar tudo em algo melhor”.
Tendo passado muitos dias deitado
debaixo da cama a contemplar os estrados de madeira sob os colchões, penso que
a essa altura eu já não passo de um rato emotivo. Preciso me dispor a levantar
para trabalhar ou morrer ou morrer de trabalhar, o que para mim pouco importa, uma
vez que sinto a obrigação de sair daqui com urgência. Quando me refugiei era um
paraíso, mas um paraíso momentâneo como logo percebi. Com o passar do tempo
comecei a descobrir estragos na madeira do estrado. Nódulos, cerne podre,
pregos amassados e entortados de qualquer maneira. Também o colchão apresenta
bolor aqui e ali e isso já me irrita assim como as teias de aranha e a sujeira
que se acumula debaixo dos móveis. Me sinto só e vazio, mas se passo para a
parte de cima da cama, sobre os colchões, aí então a minha solidão parece que
se escancara, fico desprotegido do mundo, com o vento a zunir em minhas orelhas.
Um rato emotivo coberto de fuligem, cheio de medos e vertigens, eis o que sou.
Num paroxismo de pavor, salto de debaixo da cama e já me vejo numa velha
estrada de terra vermelha que afinal desemboca no quintal da minha infância.
Acho que fui, sem o saber, uma das
vítimas de Fausto. Aquele vampiro de almas, acho que me sugou, pois me sinto
vazio como um morto-vivo, um fantasma cujo reflexo é apenas uma sombra no
espelho das águas turvas de um tanque que se romper um dia poderá destruir toda
uma cidade inteira. Percebo que o meu caso é grave na medida em que não
compartilho o convívio dos mortos nem tampouco sou notado pelos vivos e, com
certeza, esse é o fim das vítimas de Fausto.
Agora sou um peixe sem alma. Olho-me
no espelho e vejo uma cara de peixe coberta de escamas. Um peixe feio, mais
redondo que comprido, que outrora habitava o fundo do lago Baikal e que hoje
chapinha nas poças de água barrenta formada pelos cascos dos animais que chegam
às margens do tanque para saciar sua sede e deixam pegadas que logo são
invadidas pelas águas adjacentes, como uma extensão desse tanque cujo formato é
de um mapa invertido.
Não me lembro de ter conhecido esse
tal de Fausto, mas certamente nos encontramos em algum desses bares que eu
freqüentava antes de transformar-me neste misto de rato e peixe que ora se
esconde debaixo da cama, ora se chafurda na lama formada pelos cascos dos bois
da antiga fazenda onde se pescava.
O Fausto “comprou” a minha história
de vida. Uma história banal é verdade, mas era minha e era a única que eu
tinha. Hoje me encontro vazio e já faz muitos anos que não escrevo um poema. É,
deve ter sido isso. E o canalha não me pagou nada.
Milton Rezende, in “Textos e Ensaios”,
terça-feira, 20 de setembro de 2022
FELIZ NATAL - triologia I
Ontem, depois que cheguei de
lugar nenhum, acabei não saindo para nenhum outro lugar. Nada de especial
aconteceu para que eu não saísse. Eu poderia ter saído, mas não saí e era noite
de natal. Eu estava sozinho de novo, como uma criança ao pé de um muro em
ruínas e já por uma boa sequência de anos seguidos. Lembrei-me dos caminhos que
se bifurcam e que seguimos sempre por diferentes direções. Como dois rios
paralelos que nunca se encontram, como trilhos da estrada de trem abandonada em
meio ao matagal do trevo. Logo adiante há uma curva ou uma ponte e os olhos já
não alcançam o desfecho final. Fiquei pensando então numa frase de um professor
da escola que nos dizia que as paralelas se encontram no infinito e que também
os rios, todos os rios, vão dar no mar, formando uma coisa só. Eu era criança
então e naquele momento a idéia de que tudo se convergia me parecia um aceno de
felicidade futura, mas agora que já devo estar para mais do meio da minha vida
tudo isso me parece remoto e sem importância, uma vez que não poderei nunca
fazer o percurso da nascente à foz de um rio e também não poderei esgotar todo
o trajeto dos trilhos estando dentro de casa.
Rita
de C...esse nome me lembra galope e vislumbro o código de barras tatuado em sua
nádega esquerda. Nesse feriado minhas mãos estão dormentes e formigando. Vou
até a geladeira e abro uma cerveja, a primeira. Já é um pouco tarde e preciso
preparar a minha ceia de natal: arroz com lingüiça. Estou sozinho, mas não fui
apanhado de surpresa, uma vez que fui eu mesmo que cuidei em cavar a minha
própria sepultura em vida. Não fui talhado para o convívio e no entanto a
solidão me sufoca, não posso ser uma coisa nem outra. Habito uma zona de
sombra, como um espaço do não-ser. Atravesso um corredor blindado que me leva
até o meu quarto e fico lá como um dependente em uma clínica de recuperação ou
como um detento numa colônia penal agrícola. Às vezes deito-me numa posição
fetal e fico aguardando visitas... às vezes chego até uma janela que fica nos fundos
do aposento e vejo crianças brincando e retrocedo ao tempo em que eu era menino
e saíamos para a rua nas manhãs de 25 de dezembro e exibíamos os nossos
presentes deixados sobre pares de sapato à meia noite da noite anterior. Fecho
as cortinas, afinal esse tempo já passou para mim e o telefone já não toca na
casa escura e silenciosa. Sento-me para jantar. Um prato só na mesa e a
previdência de ter ao menos comprado cervejas o bastante na véspera.
A
dúvida persiste e me assola. Devo sair? Há, aqui perto, um bar onde eu poderia
ao menos escutar conversas, sentado numa cadeira de plástico e comendo
espetinhos de carne dura. Alguém provavelmente abriria o bagageiro do seu carro
e uma música horrível inviabilizaria qualquer possibilidade de diálogo. Isto posto,
desisto mais uma vez de sair.
E se eu ligasse para Roberto,
Isabel, Renata, Isaías, Francisco e todos os outros que conheço de vista ou de
bar? Mas a ocasião não é propícia e todos certamente já têm os seus esquemas
montados para a noite de hoje. Uma ligação minha só serviria para evidenciar a
minha solidão e a minha falta de perspectivas. Eu teria que mentir dizendo que
está tudo bem e inventar uma desculpa qualquer, um pretexto qualquer para estar
ligando, noite alta, procurando por uma espécie de auxílio. Contudo, resolvo
fazer um teste e abrindo uma outra cerveja, ligo pro Roberto. Ele me diz,
animado, que acaba de chegar e que só vai tomar um banho para sair novamente
para a casa da Isabel onde todos já se encontram reunidos desde há muito. Minto
dizendo que estou na estrada, em viagem, e que só liguei para desejar boas
festas. Apago as luzes da casa para que elas não denunciem a minha presença e a
grande farsa que é a minha existência.
Estou
entediado de assistir tevê. Programação besta feita sob medida para idiotas
como eu que ainda se sentam à sua frente por pura falta de opção. Desde que
cheguei e não importa de onde vim e eu também não sei, perdi tempo demais na
frente desta caixa preta que emite cores e situações aparentemente reais. Mas
só aparentemente reais. Simulacros de verdade enchendo de vida as nossas vidas
vazias. Espelhamos na tevê a nossa ausência e o sofá é o divã de nossos dias.
Dor, angústia, letargia e um apetite voraz nos entorpecem diante das imagens
bizarras da tevê. Nada melhor do que comer diante das imagens cruéis e
violentas do cotidiano selvagem das cidades. Gosto de assistir tevê assim, sem
som. Não é necessário, diante da eloquência das imagens. Fazer sexo com a tevê
ligada também é bom, desde que sem áudio. É interessante (e excitante) ver
todos aqueles lábios se movendo sem finalidade e a gente então lhe atribui uma
finalidade erótico-felativa, complementar ao ato. Às vezes, vencendo a
indolência, coloco o áudio para “assistir” ao noticiário da tevê: desfiles de
esquizofrenia. Li outro dia numa revista, um artigo que dizia que “o Brasil
parece um hospício com a contabilidade em dia, mas só um esquizofrênico poderia
deixar de perceber o que alguns malucos estão fazendo no pátio do manicômio”.
Penso
de novo em Rita de C. Mulheres são entidades. Caixas-de-surpresa que estão
sempre nos surpreendendo. Acho que não estamos preparados para elas e também
não sabemos viver sozinhos. Ritas de C. são várias, são nádegas, são sonhos e
farsas disfarçadas em enredos verossímeis. Outro dia vindo para casa eu
encontrei uma mulher usando um band-aid. Perguntei-lhe pelo seu nome e ela me
disse: Rita de C... e sumiu. Antes eu havia encontrado uma outra mulher com
prótese. Quis saber o seu nome e ela, tirando a roupa, disse-me: Rita de C... e
virou as costas para mim. Existem muitas Ritas de C., algumas são irmãs de si
mesmas, siamesas sexuais cheias de sardas. Outras são lábios e dentes,
bilabiais. Todas usam o telefone como arma de sedução e abandono. Algumas são
negras, cheias de beleza e tranças e tramas. Mas todas, num dado momento, nos
abandonam num banco de rodoviária qualquer. Ou nos deixamos lá ficar por não
termos sabido como lidar com elas. Algumas são mais fortes e cruéis e
definitivas, mas estas não se chamam Ritas de C. São Exéquias. Dulcinéias Del
Toboso, gozo de alto risco, gozo perigoso, jogos de azar. Machucam e ferem ao
longo de muitos anos, todos os anos da nossa vida e sorriem e nos esmagam
acenando com possibilidades e ainda assim as amamos e queremos nos casar com
elas que nunca se casarão conosco e também nunca nos dispensam do seu domínio.
Algumas destas costumam levar ao suicídio. E finalmente há as verdadeiras, que
são poucas e constituídas de si mesmas. Parecem mães e crianças e são fortes e
frágeis como um sol estendido sobre a lona das nossas fraquezas. São máximas e
rigorosas e são laicas como a constituição dos povos. Não nos salvam de nós
mesmos, mas tornam a vida suportável, se estamos ao lado delas. Se as perdemos,
ficamos fracos, vulneráveis e então escrevemos versos.
A
noite prossegue já quase finda e eu ainda não me decidi se devo ou não sair, ir
a algum lugar, a qualquer parte, por o focinho pra fora da caverna. Isto sempre
acontece comigo, principalmente em feriados prolongados. Sob o pretexto do
álcool e da literatura, tranco-me em casa por intermináveis dias seguidos e
fico exercitando a morte. Foguetes lá fora e músicas natalinas e cachorros
latindo. Acho que vou assistir a um vídeo e esquecer a tempestade interior,
fundir-me com ela, retroceder a dor. Subo numa cadeira para alcançar a
prateleira superior de minha estante onde estão as minhas poucas fitas de
filmes e musicais. Pink Floyd, The Wall de Alan Parker. Rebobino a fita, aperto o play e uma voz
em off canta longe e ao fundo a cantiga do menino sem natal, na introdução
deste belíssimo filme: “O natal chega só uma vez por ano, para todas as meninas
e meninos. E o riso e a alegria eles encontram em cada brinquedo novo. Vou
contar-lhe do nosso menininho que mora aí em frente. O natal deste garotinho...
é um dia como qualquer outro”.
Milton
Rezende, in “Textos e Ensaios”, ano 2012, prosa Milton Rezende
O MENINO DA SUA MÃE
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.
A Poesia do Eu. Fernando Pessoa.
quinta-feira, 18 de agosto de 2022
A RESPEITO DO BLOG
A literatura é um troço engraçado, por mais que a gente faça fica sempre um vazio na receptividade, como se fosse uma pista de mão única. entretanto cabe-nos caminhar por esta estrada deserta e iluminada. um dos clarões da lua aponta para um pequeno blog. convido alguns transeuntes a darem uma olhada e a seguir, mesmo porque não custa nada.
domingo, 14 de agosto de 2022
A propósito de "O privilégio dos mortos", de Whisner Fraga
Por Milton Rezende
O
filme “Bonitinha, mas ordinária”, um clássico do cinema nacional, com bela
atuação do saudoso José Wilker e inspirado na célebre peça de Nelson Rodrigues.
Mas o bordão/ideia-fixa do filme, que foi repetido diversas vezes pelo
personagem Edgard, é “O mineiro só é solidário no câncer”, frase
atribuída a Otto Lara Resende.
Esta
frase tornou-se icônica, mas não é bem verdade. Entretanto dita pelo ator José
Wilker com tanta e especial ênfase que eu me recordo até
hoje, donde se depreende que a ênfase é tudo. O próprio Drummond tem um verso
neste sentido ao dizer “as coisas/que triste são as coisas consideradas sem
ênfase” ( in A Flor e a Náusea).
Então,
para todos os efeitos, tornou-se realmente verdade que o mineiro só é solidário
no câncer. Por extensão poderíamos dizer, alargando o seu horizonte e seu
alcance que “O brasileiro só é solidário no câncer”. Aliás, eu acho
que é assim que se encontra no filme, não tenho bem certeza.
No
romance de Whisner Fraga “o privilégio dos mortos”, publicado pela Editora
Patuá no ano de 2019, tem muito disso, pois trata-se de um romance composto,
todo ele, de frases poéticas, algumas de efeito. Poder-se-ia dizer, exagerando
um pouco, já que o livro é extenso, com 250 páginas, que é um longo poema em
prosa. Mas não. São frases poéticas mesmo, soltas, avulsas, lapidares, como
pássaros esvoaçantes, em todo o corpo do livro. Você pode ir pinçando aqui e
acolá a seu bel prazer, estas frases, helena.
O
narrador, de passagem por Tejuco, sua cidade natal, retornando a ela diz: “fui
até a rua seis e, a poucos passos do portão verde da casa em que meu amigo morou,
ainda estava em dúvida se devia gritar por ele ou não”. E foi assim
que o personagem-narrador “começou a questionar a sua morte”, a morte do seu
amigo heitor. E para ele, o narrador, “o processo só se completa quando eu
contemplo o cadáver, quando atesto, que a pessoa abandonou, de fato, esse
mundo”. “e eu não queria enlouquecer, pois os loucos sofrem demais, helena.
Mais
adiante o narrador segue introjetando a perda do amigo à sombra de sua cidade
natal Tejuco.
“e
na noite anterior, helena, eu vinha cansado de outros juízos e não consegui,
por um momento, acatar as pistas da lógica e depois, depois, helena, convivia
com essa excentricidade: eu precisava ver o corpo, eu precisava tocar o frio, a
ausência, a rigidez, para me certificar do fim e foi isso que se deu,
certamente foi isso, porque eu havia deixado Tejuco e presenciei a morte de meu
amigo, apenas naquela folha a-quatro descorada, que anunciava a missa de sétimo
dia”.
“o
pânico é uma necessidade de deserção”.
E
o narrador do livro, num paroxismo de álcool e de delírio, desenterra o seu
amigo heitor. Este romance é feito, todo ele, assim: não há um enredo definido
e obedece ao fluxo de consciência do narrador/autor.
Outro
recurso utilizado, além de ser escrito totalmente em letras minúsculas, até
para nomes próprios, é a inserção da “personagem” helena, sempre citada ao
longo do livro, dando a ele uma coloquialidade e uma fluidez tremenda.
Verdadeiramente um achado literário, não é mesmo, helena?
É
quando, afinal, e ao final do livro, a turma chega ao cemitério de Tejuco para
celebrar a morte do amigo heitor. E eles são alguns e a turma entre excitada e
embriagada, pois embriaguez e sensualidade é o que de melhor define a morte,
desde os filmes do Nosferatu, de Marnau, com excepcional interpretação de Max
Schreck, quando ele sobe as escadas do imponderável e do inevitável.
E então esta turma suborna o coveiro com uma garrafa de cachaça e vão todos
celebrar a Morte, a morte do amigo heitor e numa “evasão” erótica de corpos
despindo de suas vestes e dançando sobre as tumbas, que nem observam quando o
narrador do romance se distancia uns quinze metros rumo ao túmulo do seu amigo
heitor e o desenterra e, abrindo o caixão, abraça o cadáver do amigo
“vendo e sentindo o corpo do seu amigo inchado, seu amigo incompleto, seu amigo
carcomido, seu amigo escurecido e sente vontade de abraçá-lo,
de beijá-lo como fazem aqueles que se despedem e o puxa para perto,
sentindo tudo que eventualmente fora pele, que fora carne, que fora músculo,
que fora união, cola nele e, mesmo enojado, avança seus lábios e aproxima a
cabeça do seu peito e sente medo de que tudo desmorone, tem medo que algo que
já tenha sido ele, heitor, esteja por perto e não goste daquele carinho, de
forma que tenta não amarotar o terno cinza...” e se despede do seu amigo
indagando: “o experimento de deus tem prazo de validade?”
“a proximidade da morte fortalece minha fé,
o
que me resta senão isso?
resta-lhe
o mundo.
e
a esperança?
a
esperança não.”
Acontece nos Livros Milton Rezende
quarta-feira, 3 de agosto de 2022
ACROBATA
um pessegueiro roxo
braços em formas de garras
dedos intumescidos
pernas retesadas.
quando estamos dormindo
tudo parece fácil:
pé fora da cama
e acrobacia de quedas.
quinta-feira, 30 de junho de 2022
OUTRO SILVA IS DEAD
“saí para me divertir,
acabei
num enterro.
um
parente distante.”
(Dostoiévski)
Eu não sabia até
então. Sexta-feira de chuva fina e o colapso do mundo sendo alardeado por todos
e em tudo quanto é canto. Desliguei-me das pessoas mais em função disso, pois
preferia a visão das nuvens e dos pássaros que eu alimentava como se estivesse
longe. Não estava. A realidade me cerceava e eu saí para encher a cara. Num
pequeno beco sem saída havia um boteco e logo em frente o cemitério.
Entre um gole e outro passou o
cortejo fúnebre e resolvi acompanhar. Durante o percurso fui informado que se
tratava da morte de um sujeito conhecido como “Outro Silva”, aliás, pouco
conhecido, a julgar pelo nome. Afinal são tantos silvas que um silva a mais ou
um a menos não faria, àquela altura, muita diferença. Como se fosse um silvo no
deserto.
Devido
a esta singularidade do nome do defunto, resolvi acompanhá-lo até sua última
morada e no trajeto tentaria saber mais sobre o cadáver. Entabulei conversação
com um senhor de meia-idade que estava do meu lado, julgando que fossem
parentes. Na verdade só trabalhavam juntos num escritório mixuruca de
contabilidade e redação de textos para jornais.
Alexandre
Barret era o nome da pessoa com a qual eu falava. Indagado a respeito do
falecido disse-me que o “Outro Silva” era um homem estranho como o próprio
nome, mas davam-se bem no serviço diário onde se encontravam como empregados de
um proprietário, que morava numa cidade distante e repassava as suas ordens por
telefone ou por e-mail.
Numa
dessas ordens foi que o “Outro Silva” se destacou, produzindo sob encomenda seu
único texto re/conhecido: “Gênese de um nome e de um livro”, que acabou sendo
publicado como apresentação ao livro “Textos e Ensaios”, do escritor mineiro
Milton Rezende.
“Depois
disso, apesar da pequena repercussão favorável aos seus escritos, não produziu
mais nada que eu saiba e entrou assim numa espécie de recesso das ideias”,
disse-me o Barret sobre o seu finado amigo, quando já ultrapassávamos o portão
de grades da entrada do cemitério. Poucas pessoas acompanhavam o cortejo, pois
atualmente já não se usa muito celebrar os rituais da morte e ela, esvaziada do
seu contexto histórico, aninhou-se no subconsciente humano produzindo ali
estragos ainda maiores de quando era uma senhora respeitada na sociedade.
A
causa da morte do “Outro Silva”, conforme atestado de óbito assinado pelo
médico plantonista, Dr. Carlos Águia, teria ocorrido em função de “insuficiência
respiratória aguda, edema agudo do pulmão, infarto agudo do miocárdio e
hipertensão arterial sistêmica”. Contava 47 anos.
Foi
enterrado ao lado do finado Tibúrcio Soledade que, segundo consta, teria
sepultado a si mesmo no quintal de sua própria casa numa crise de identidade. Mais
tarde seu corpo foi transladado para este cemitério e agora jazem os dois em
covas rasas, esquecidos de si mesmos e dos homens com os quais haviam
convivido.
Despedi-me
do Alexandre Barret na saída e uma vaga nuvem de tristeza rondava-me os olhos
lacrimejantes. Voltei ao boteco do beco para celebrar a continuidade da vida
num ninho de passarinho que eu vira construído no coqueiro ao lado do túmulo do
“Outro Silva”.
Sobre
a mesa do bar estava um exemplar do Diário de Notícias, estampando em letras
garrafais a corrupção nossa de cada dia e a cara dos políticos escarnecendo das
nossas caras de otários. Um sujeito passou na rua de carro e deu para
acompanhar o refrão da música de rap que tocava através do pen drive: “era só
mais um silva que a estrela não brilha”.