Por Milton Rezende
O
filme “Bonitinha, mas ordinária”, um clássico do cinema nacional, com bela
atuação do saudoso José Wilker e inspirado na célebre peça de Nelson Rodrigues.
Mas o bordão/ideia-fixa do filme, que foi repetido diversas vezes pelo
personagem Edgard, é “O mineiro só é solidário no câncer”, frase
atribuída a Otto Lara Resende.
Esta
frase tornou-se icônica, mas não é bem verdade. Entretanto dita pelo ator José
Wilker com tanta e especial ênfase que eu me recordo até
hoje, donde se depreende que a ênfase é tudo. O próprio Drummond tem um verso
neste sentido ao dizer “as coisas/que triste são as coisas consideradas sem
ênfase” ( in A Flor e a Náusea).
Então,
para todos os efeitos, tornou-se realmente verdade que o mineiro só é solidário
no câncer. Por extensão poderíamos dizer, alargando o seu horizonte e seu
alcance que “O brasileiro só é solidário no câncer”. Aliás, eu acho
que é assim que se encontra no filme, não tenho bem certeza.
No
romance de Whisner Fraga “o privilégio dos mortos”, publicado pela Editora
Patuá no ano de 2019, tem muito disso, pois trata-se de um romance composto,
todo ele, de frases poéticas, algumas de efeito. Poder-se-ia dizer, exagerando
um pouco, já que o livro é extenso, com 250 páginas, que é um longo poema em
prosa. Mas não. São frases poéticas mesmo, soltas, avulsas, lapidares, como
pássaros esvoaçantes, em todo o corpo do livro. Você pode ir pinçando aqui e
acolá a seu bel prazer, estas frases, helena.
O
narrador, de passagem por Tejuco, sua cidade natal, retornando a ela diz: “fui
até a rua seis e, a poucos passos do portão verde da casa em que meu amigo morou,
ainda estava em dúvida se devia gritar por ele ou não”. E foi assim
que o personagem-narrador “começou a questionar a sua morte”, a morte do seu
amigo heitor. E para ele, o narrador, “o processo só se completa quando eu
contemplo o cadáver, quando atesto, que a pessoa abandonou, de fato, esse
mundo”. “e eu não queria enlouquecer, pois os loucos sofrem demais, helena.
Mais
adiante o narrador segue introjetando a perda do amigo à sombra de sua cidade
natal Tejuco.
“e
na noite anterior, helena, eu vinha cansado de outros juízos e não consegui,
por um momento, acatar as pistas da lógica e depois, depois, helena, convivia
com essa excentricidade: eu precisava ver o corpo, eu precisava tocar o frio, a
ausência, a rigidez, para me certificar do fim e foi isso que se deu,
certamente foi isso, porque eu havia deixado Tejuco e presenciei a morte de meu
amigo, apenas naquela folha a-quatro descorada, que anunciava a missa de sétimo
dia”.
“o
pânico é uma necessidade de deserção”.
E
o narrador do livro, num paroxismo de álcool e de delírio, desenterra o seu
amigo heitor. Este romance é feito, todo ele, assim: não há um enredo definido
e obedece ao fluxo de consciência do narrador/autor.
Outro
recurso utilizado, além de ser escrito totalmente em letras minúsculas, até
para nomes próprios, é a inserção da “personagem” helena, sempre citada ao
longo do livro, dando a ele uma coloquialidade e uma fluidez tremenda.
Verdadeiramente um achado literário, não é mesmo, helena?
É
quando, afinal, e ao final do livro, a turma chega ao cemitério de Tejuco para
celebrar a morte do amigo heitor. E eles são alguns e a turma entre excitada e
embriagada, pois embriaguez e sensualidade é o que de melhor define a morte,
desde os filmes do Nosferatu, de Marnau, com excepcional interpretação de Max
Schreck, quando ele sobe as escadas do imponderável e do inevitável.
E então esta turma suborna o coveiro com uma garrafa de cachaça e vão todos
celebrar a Morte, a morte do amigo heitor e numa “evasão” erótica de corpos
despindo de suas vestes e dançando sobre as tumbas, que nem observam quando o
narrador do romance se distancia uns quinze metros rumo ao túmulo do seu amigo
heitor e o desenterra e, abrindo o caixão, abraça o cadáver do amigo
“vendo e sentindo o corpo do seu amigo inchado, seu amigo incompleto, seu amigo
carcomido, seu amigo escurecido e sente vontade de abraçá-lo,
de beijá-lo como fazem aqueles que se despedem e o puxa para perto,
sentindo tudo que eventualmente fora pele, que fora carne, que fora músculo,
que fora união, cola nele e, mesmo enojado, avança seus lábios e aproxima a
cabeça do seu peito e sente medo de que tudo desmorone, tem medo que algo que
já tenha sido ele, heitor, esteja por perto e não goste daquele carinho, de
forma que tenta não amarotar o terno cinza...” e se despede do seu amigo
indagando: “o experimento de deus tem prazo de validade?”
“a proximidade da morte fortalece minha fé,
o
que me resta senão isso?
resta-lhe
o mundo.
e
a esperança?
a
esperança não.”
Acontece nos Livros Milton Rezende
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