Ontem, depois que cheguei de
lugar nenhum, acabei não saindo para nenhum outro lugar. Nada de especial
aconteceu para que eu não saísse. Eu poderia ter saído, mas não saí e era noite
de natal. Eu estava sozinho de novo, como uma criança ao pé de um muro em
ruínas e já por uma boa sequência de anos seguidos. Lembrei-me dos caminhos que
se bifurcam e que seguimos sempre por diferentes direções. Como dois rios
paralelos que nunca se encontram, como trilhos da estrada de trem abandonada em
meio ao matagal do trevo. Logo adiante há uma curva ou uma ponte e os olhos já
não alcançam o desfecho final. Fiquei pensando então numa frase de um professor
da escola que nos dizia que as paralelas se encontram no infinito e que também
os rios, todos os rios, vão dar no mar, formando uma coisa só. Eu era criança
então e naquele momento a idéia de que tudo se convergia me parecia um aceno de
felicidade futura, mas agora que já devo estar para mais do meio da minha vida
tudo isso me parece remoto e sem importância, uma vez que não poderei nunca
fazer o percurso da nascente à foz de um rio e também não poderei esgotar todo
o trajeto dos trilhos estando dentro de casa.
Rita
de C...esse nome me lembra galope e vislumbro o código de barras tatuado em sua
nádega esquerda. Nesse feriado minhas mãos estão dormentes e formigando. Vou
até a geladeira e abro uma cerveja, a primeira. Já é um pouco tarde e preciso
preparar a minha ceia de natal: arroz com lingüiça. Estou sozinho, mas não fui
apanhado de surpresa, uma vez que fui eu mesmo que cuidei em cavar a minha
própria sepultura em vida. Não fui talhado para o convívio e no entanto a
solidão me sufoca, não posso ser uma coisa nem outra. Habito uma zona de
sombra, como um espaço do não-ser. Atravesso um corredor blindado que me leva
até o meu quarto e fico lá como um dependente em uma clínica de recuperação ou
como um detento numa colônia penal agrícola. Às vezes deito-me numa posição
fetal e fico aguardando visitas... às vezes chego até uma janela que fica nos fundos
do aposento e vejo crianças brincando e retrocedo ao tempo em que eu era menino
e saíamos para a rua nas manhãs de 25 de dezembro e exibíamos os nossos
presentes deixados sobre pares de sapato à meia noite da noite anterior. Fecho
as cortinas, afinal esse tempo já passou para mim e o telefone já não toca na
casa escura e silenciosa. Sento-me para jantar. Um prato só na mesa e a
previdência de ter ao menos comprado cervejas o bastante na véspera.
A
dúvida persiste e me assola. Devo sair? Há, aqui perto, um bar onde eu poderia
ao menos escutar conversas, sentado numa cadeira de plástico e comendo
espetinhos de carne dura. Alguém provavelmente abriria o bagageiro do seu carro
e uma música horrível inviabilizaria qualquer possibilidade de diálogo. Isto posto,
desisto mais uma vez de sair.
E se eu ligasse para Roberto,
Isabel, Renata, Isaías, Francisco e todos os outros que conheço de vista ou de
bar? Mas a ocasião não é propícia e todos certamente já têm os seus esquemas
montados para a noite de hoje. Uma ligação minha só serviria para evidenciar a
minha solidão e a minha falta de perspectivas. Eu teria que mentir dizendo que
está tudo bem e inventar uma desculpa qualquer, um pretexto qualquer para estar
ligando, noite alta, procurando por uma espécie de auxílio. Contudo, resolvo
fazer um teste e abrindo uma outra cerveja, ligo pro Roberto. Ele me diz,
animado, que acaba de chegar e que só vai tomar um banho para sair novamente
para a casa da Isabel onde todos já se encontram reunidos desde há muito. Minto
dizendo que estou na estrada, em viagem, e que só liguei para desejar boas
festas. Apago as luzes da casa para que elas não denunciem a minha presença e a
grande farsa que é a minha existência.
Estou
entediado de assistir tevê. Programação besta feita sob medida para idiotas
como eu que ainda se sentam à sua frente por pura falta de opção. Desde que
cheguei e não importa de onde vim e eu também não sei, perdi tempo demais na
frente desta caixa preta que emite cores e situações aparentemente reais. Mas
só aparentemente reais. Simulacros de verdade enchendo de vida as nossas vidas
vazias. Espelhamos na tevê a nossa ausência e o sofá é o divã de nossos dias.
Dor, angústia, letargia e um apetite voraz nos entorpecem diante das imagens
bizarras da tevê. Nada melhor do que comer diante das imagens cruéis e
violentas do cotidiano selvagem das cidades. Gosto de assistir tevê assim, sem
som. Não é necessário, diante da eloquência das imagens. Fazer sexo com a tevê
ligada também é bom, desde que sem áudio. É interessante (e excitante) ver
todos aqueles lábios se movendo sem finalidade e a gente então lhe atribui uma
finalidade erótico-felativa, complementar ao ato. Às vezes, vencendo a
indolência, coloco o áudio para “assistir” ao noticiário da tevê: desfiles de
esquizofrenia. Li outro dia numa revista, um artigo que dizia que “o Brasil
parece um hospício com a contabilidade em dia, mas só um esquizofrênico poderia
deixar de perceber o que alguns malucos estão fazendo no pátio do manicômio”.
Penso
de novo em Rita de C. Mulheres são entidades. Caixas-de-surpresa que estão
sempre nos surpreendendo. Acho que não estamos preparados para elas e também
não sabemos viver sozinhos. Ritas de C. são várias, são nádegas, são sonhos e
farsas disfarçadas em enredos verossímeis. Outro dia vindo para casa eu
encontrei uma mulher usando um band-aid. Perguntei-lhe pelo seu nome e ela me
disse: Rita de C... e sumiu. Antes eu havia encontrado uma outra mulher com
prótese. Quis saber o seu nome e ela, tirando a roupa, disse-me: Rita de C... e
virou as costas para mim. Existem muitas Ritas de C., algumas são irmãs de si
mesmas, siamesas sexuais cheias de sardas. Outras são lábios e dentes,
bilabiais. Todas usam o telefone como arma de sedução e abandono. Algumas são
negras, cheias de beleza e tranças e tramas. Mas todas, num dado momento, nos
abandonam num banco de rodoviária qualquer. Ou nos deixamos lá ficar por não
termos sabido como lidar com elas. Algumas são mais fortes e cruéis e
definitivas, mas estas não se chamam Ritas de C. São Exéquias. Dulcinéias Del
Toboso, gozo de alto risco, gozo perigoso, jogos de azar. Machucam e ferem ao
longo de muitos anos, todos os anos da nossa vida e sorriem e nos esmagam
acenando com possibilidades e ainda assim as amamos e queremos nos casar com
elas que nunca se casarão conosco e também nunca nos dispensam do seu domínio.
Algumas destas costumam levar ao suicídio. E finalmente há as verdadeiras, que
são poucas e constituídas de si mesmas. Parecem mães e crianças e são fortes e
frágeis como um sol estendido sobre a lona das nossas fraquezas. São máximas e
rigorosas e são laicas como a constituição dos povos. Não nos salvam de nós
mesmos, mas tornam a vida suportável, se estamos ao lado delas. Se as perdemos,
ficamos fracos, vulneráveis e então escrevemos versos.
A
noite prossegue já quase finda e eu ainda não me decidi se devo ou não sair, ir
a algum lugar, a qualquer parte, por o focinho pra fora da caverna. Isto sempre
acontece comigo, principalmente em feriados prolongados. Sob o pretexto do
álcool e da literatura, tranco-me em casa por intermináveis dias seguidos e
fico exercitando a morte. Foguetes lá fora e músicas natalinas e cachorros
latindo. Acho que vou assistir a um vídeo e esquecer a tempestade interior,
fundir-me com ela, retroceder a dor. Subo numa cadeira para alcançar a
prateleira superior de minha estante onde estão as minhas poucas fitas de
filmes e musicais. Pink Floyd, The Wall de Alan Parker. Rebobino a fita, aperto o play e uma voz
em off canta longe e ao fundo a cantiga do menino sem natal, na introdução
deste belíssimo filme: “O natal chega só uma vez por ano, para todas as meninas
e meninos. E o riso e a alegria eles encontram em cada brinquedo novo. Vou
contar-lhe do nosso menininho que mora aí em frente. O natal deste garotinho...
é um dia como qualquer outro”.
Milton
Rezende, in “Textos e Ensaios”, ano 2012, prosa Milton Rezende
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