segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

DA ESSENCIALIDADE DA ÁGUA


 

Da essencialidade da água

 

Por Krishnamurti Góes dos Anjos (*)

 

O tempo que decorre implacável, sobretudo para aqueles que já passaram de certa idade, e que se vêm diante de situações aflitivas que comprometem a saúde, tende a evocar a proximidade da ‘indesejada das gentes’, a morte. Em momentos tais, se nos dermos à meditações mais detidas e aprofundadas, lembramos dos entes que nos foram caros, daqueles que de alguma forma partilharam de nossas vidas. Surge então nas telas da memória a imensa legião dos que já não vivem entre nós. Vemos-os desfilar com as paixões que os consumiram, com seus ódios, suas amizades e carinhos, amores, desejos e ambições desvanecidas na poeira do tempo que passou. E nos perguntamos indignados: Por que tanta vida, pensamento, inteligência e sentimentos se tudo deve terminar no sepulcro? Em sua carreira, para onde vai, pois, o homem? Para o nada ou para uma luz desconhecida?

A recente publicação pela novíssima Editora Sinete da obra “Da essencialidade da água” do escritor Milton Rezende tem o poder de despertar no leitor os questionamentos acima. Rezende que é autor de larga experiência no mundo literário com quatorze livros publicados, surpreende ao reunir no volume poemas escritos em passado recente, aos quais ironicamente batizou de “uns versos de circunstância”. Poemas que revelam a difícil situação pela qual passou em decorrência de um derrame isquêmico do lado direito do corpo que o deixou por meses internado e com graves sequelas. A obra é plasmada numa espécie de  terapia primal (abordagem psicológica que visa tratar traumas, através da liberação de emoções reprimidas. Baseia-se num conceito de que as neuroses e as doenças são causadas por dores reprimidas, e que a solução é reviver essas dores). Mais do que o simples resgate de emoções reprimidas, que sem dúvida nos causam sentimentos de empatia e solidariedade, a obra sacode o leitor porque incita reflexões outras sobre o que pensamos afinal que seja a morte, esse acontecimento temido  e inevitável que a maioria de nós sequer reflete sobre:   

“Em meio a esse caos de tantas dores e os músculos retesados repuxando / no braço / como se fosse me virar do avesso, o que faz com que minha cabeça não / consiga / pensar mais eu lanço tudo no livro das horas, antes de fechar a brochura / contábil.” p.40.

            Assim, como bem o aponta o editor Whisner Fraga em prefácio à obra, o poeta se insurge contra o mundo de realidade brutal e tenta recomeçar, em meio a limitações, fármacos, injeções e terapias. Segue tecendo mais uma obra. Ainda que o corpo vacile diante da monstruosa tarefa de continuar. Não é fácil... Superar a própria dor física, o sofrimento existencial imposto pelas “voltas da vida”, e ainda assim, tentar adentrar as camadas mais profundas do ser. Eis a que ponto chegamos neste nosso mundo em que a fé se extinguiu, o ceticismo e o materialismo tomam corpos, paixões, e apetites são estimulados, e a mediocridade e a violência exacerbadas tomam corpo.

O autor consegue extrair certa beleza melancólica das coisas mais improváveis e dos fatos mais banais.... Desencanto, na linha de um Carlos Drummond de Andrade, conterrâneo de Rezende, que aliás figura em vários dos poemas, seja em epígrafes de versos, seja como revisitações textuais ou ainda aquele certo “sentimento do mundo”. Sentimento que identifica, e questiona ainda hoje, a posição do indivíduo em um mundo cada vez mais artificial e tecnológico, marcado por conflitos, êxodos, guerras e pelo surgimento de armas cada vez mais letais. Por outro lado, sentimos no filtro da sua subjetividade autoral a busca de uma esperança para a vida, em meio a essa brutal crise de sentido e de valor que vivemos presentemente.

            Há também a presença do "Horror Cósmico" criado por Howard Phillips Lovecraft porque o absurdo em que transformamos o mundo, de tão cruéis convocam a literatura fantástica.  Em alguns poemas Rezende envereda por uma linha fantástica que confronta ideias do iluminismo, cristianismo e do humanismo, como acontece nos poemas “Quarto 602”, “A marca da besta” e “ A besta de Gevaudan”.

Mas também há de se observar que a reação humana  brota em nascentes insuspeitadas de esperança. Aí a “essencialidade da água.” que nos sugere aquele dito milenar de Heráclito de Éfeso a nos alertar que “Nenhum homem pode banhar-se duas vezes nas águas do mesmo rio... pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem!”. Tanto o rio quanto a pessoa que o atravessa estão em um estado de transformação contínua. Um aprendizado constante que nos permite entendimento diferente de algo que se repete. Assim, ao lermos poemas como  “Camadas de água”, “Uma poesia a marteladas”, “Corpo”, “Quando acordei do coma parece que entrei num pesadelo”, “Disritmia”, “Fogo-fátuo (ignes fatuus)”, “Visão periférica”, “Ódio II” e  “Versão”, somos instados a amadurecer o nosso senso crítico, a capacidade analítica e a reinterpretar a vida.

            Finalmente. Há neste livro de Milton Rezende um verso que chama a atenção: “Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor”. É uma verdade, mas uma verdade que deve ser entendida também pelo viés daquela arte que só o humano pode executar. Aquela arte mais admirável, mais sublime e não menos DOLOROSA. A de esculpir-se a si mesmo a cada dia. O pêndulo da vida e da morte oscila ininterruptamente. O homem, com suas obras, terá por destino o nada, o olvido? A morte como ainda a entendemos? Será mesmo a vida o resultado de um acaso estúpido?

Aqueles que estão cansados de viver como cegos, ignorando-se a si mesmos, aqueles que não se satisfazem mais com as superficialidades de uma civilização material, mas que aspiram a uma ordem de coisas mais elevadas precisam continuar a se ‘esculpir’. Não há escapatória para mudar essa dicotomia infeliz. De um lado as religiões, com o cortejo de radicalismos e interesses escusos, o espírito de dominação e intolerância. E “ o deus de barro que criaram se esfarela como pó seco”. Do outro, a ciência e o tecnicismo materialista em seus princípios como em seus fins, com frias negações e exagerada inclinação para o individualismo. “A besta do Apocalipse / era bem mais sutil / e se infiltrava / em todas as camadas / do fazer humano: / relações interpessoais / e políticas. Em tudo a mesma carnificina. // Olhe ao redor e vislumbre / o caos, as classes, os clãs / e os dentes incisivos na / carne putrefata.”

Religião e ciência. Uma a oferecer um paraíso inacessível ou uma eternidade de suplícios, a outra, o nada absoluto! E os homens se engalfinham, combatem, sem se poderem vencer, porque cada uma delas corresponde a uma necessidade imperiosa do ser: uma fala ao coração, a outra dirige-se ao espírito e à razão. Os sentimentos do humanismo se enfraqueceram, a divisão e o ódio substituíram a compaixão e a união.

            Alguma vez o arremesso ao acaso das letras do alfabeto produziu um poema? Entregue a si mesma nada pode a matéria. Só se explica a harmonia do universo que nos cerca pela intervenção de uma vontade. É pela ação de forças sobre a matéria, pela existência de leis sábias e profundas, que tal vontade se manifesta na ordem do Universo, que também  compõe, dispõe e acomoda a natureza do Planeta - com que força isto está nos sendo cobrado atualmente!  – a apontar e provar a existência de um plano. A atividade dos elementos que concorrem para tal realização denota uma causa oculta, infinitamente sábia e poderosa a que nossa intuição e consciência dão o nome de Deus.

  31/12/2024. Que nos venha um Ano Novo com muita saúde, paz e luz!

Livro: “Da essencialidade da água” – Poesias de Milton Rezende, Editora Sinete – São Paulo / SP, 2024, 124 p.  ISBN 978-65-997365-9-9

Links para compra e pronto envio:  https://www.sineteeditora.com.br/da-essencialidade-da-agua

https://www.facebook.com/milton.rezende.96

(*) Krishnamurti Góes dos Anjos tem publicados os livros: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos, Doze Contos & meio Poema, À flor da pele – Contos e Destinos que se cruzam - Romance. Participou de 30 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Há textos seus publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último romance publicado pela editora portuguesa Chiado – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.  

domingo, 8 de dezembro de 2024

POEMAS DE EDSON BRAZ DA SILVA


OCASO


 O caso é o seguinte:

o caos não chegou por

acaso.

 

ROTINA


A gente se acostuma
contudo

não deveria.

 

ARCANO


Mergulho nas águas profundas e turvas sem me molhar
Submerso em meus temores e pesadelos, não expiro o
ar de meus pulmões prestes a explodir

Não há peixes, cavalos marinhos ou algas
Não há carcaças de navios piratas naufragados
Não há sequer tubarões famintos ou polvos abobalhados


Há apenas trevas teimando em ser cada vez mais trevas
O sol e o céu azul, a lua e as estrelas
os sons, as vozes, as canções – Onde estão?

Sou carreado por correntes marinhas que, por sua vez,
não me levam a lugar algum, embora me arrastem
Tento me recordar do que deixei alhures, mas tudo


se esvaiu como a fumaça de meu último cigarro
e o gole de minha derradeira aguardente. Não amei
mulher alguma a ponto de sentir saudade, apenas tesão

Minha tentativa de pronunciar algo nesse momento solene se torna
borbulhas de ar, o que é muito mais do que as anteriores, cujas
palavras se perdiam no vazio, invisíveis, inaudíveis, ininteligíveis

As vozes que já ouvi tentam em vão me dizer algo, mas nada
remanesceu de tudo o que escutei e tampouco de tudo o que falei
Devo estar chorando, mas como saber, submerso e impermeável?

 

Indefeso e indeciso, rompo em braçadas e pernadas rumo a
um lugar que cintila ante meu olhar de louco, ou de peixe
morto... e meus pulmões prestes a explodir.

 

O AUTOR:

 

Edson Braz nasceu em Juiz de Fora/MG, em 22/10/1957. Cursou, sem concluir, Letras e Psicologia. Publicou trabalhos em jornais alternativos e antologias, destacando Banco de Talentos-2001 (FEBRABAN) e Poesia em Movimento-2002 (FUNALFA). Publicou POEMA(S) EM VÃO, Ed. Scortecci, em 1989, o livro de contos O TOMBO E OUTROS ACIDENTES (Editora Penalux), em 2013, e o romance QUEDA LIVRE (Big Time Editora), em 2016. Tem um romance e uma coletânea de textos em fase de conclusão, além de poesias “engavetadas”, como se dizia noutros tempos, projetos que pretende concluir até o próximo lockdown. Faleceu dia 13/12/2020, por covid19.

 

 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

BOTÂNICA E AS VARIAÇÕES DA FLOR

 


botão de ouro

primavera

dente-de-leão

rosa

ervilha

cicuta-menor

campainha azul

dulcamara

orquídea

junquilho

narciso

lírio amarelo

flor-de-lis

sépalas

pétalas

androceu

gineceu

ela e eu.

 

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

CAMADAS DE ÁGUA

 


“o peixe sabe de tudo e nada”

autoria desconhecida, século XIII

 

tenho dois meses

para morrer

o ódio

me circunscreve

como camadas

de água que vem

inundando tudo,

desde as primeiras células

aos últimos fios de cabelo

e são águas salobras, escuras

de quando faço a descida

da ponte para beber

desta água, o líquido, mas ai,

tem gosto de peixes putrefatos

peixes analógicos e peixes digitais.

 

“São voltas da vida, voltas da vida”,

como dizia o enfermo Valdemar

em seu leito de morte e honradez.

 

lembro de ser abominado pelo meu próprio sangue,

por ser alcoolizado e desistente (“mas eu não sei

porque me sinto assim, vem de repente

um anjo triste perto de mim”). Ah, que merda!

e algumas e diversas era esse o meu mote

para a distração em histórias em quadrinhos

e as primeiras letras e composições em cadernos.

 

sessenta anos, soa o sino em meu tímpano.

 

meu prazo e o peso desta incongruência

dobra-me o pé direito na sandália surrada

“Casa da Eternidade”, que em hebraico se escreve,

bet kevarot, mas já não sou digno de cheirar o ar,

a água límpida, o pensamento puro, inoxidável

 

deverei ficar circunscrito a este cemitério de angu,

atolado até os joelhos junto com as fezes dos porcos

que se procuravam alimentar para o sacrifício final,

num circo fúnebre onde seriam então recheados

com “pêlo de gato, pêlo de um aleijado, chocalho

de cascavel, pés de rã, orelhas de sapo, dentes

de cão e garras de coelho”, para o cardápio da

criança ingênua pensando que ao sair da escola, ah,


e ele pensava, defeituoso e ingênuo das Gerais

“chegando em casa vou pegar uma jantinha”.

 o controle 44 era uma tecla onde soava uma música

em todos os dias (July 28th) e era singela como as

lembranças que não puderam ser nesta (sic) encarnação:

“lembrei de nós, do que ficou, se ficou não vai ter final”.

 

mas antes há de vir o controle 72, do aniquilamento,

da vida quando se torna um fardo pestilento, e eu bato

a cabeça no travesseiro como uma lagartixa inútil, de olhos

arregalados e o estômago e o cérebro entupido de remédios

num quadro consolidado e sem volta, assim como do meu pai.

 

“São voltas da vida, voltas da vida”,

como dizia o enfermo Valdemar

em seu leito de morte e honradez.

 

queria ter a grandeza e a percepção da vida num leito de hospital

para morrer fazendo este balanço isento de que tudo. “são voltas da vida,

voltas da vida”, e no dia seguinte o Sr. Valdemar já não acordava mais.

que venha esta noite, em mim também, ó morte, como num plenilúnio

será que, depois disso, a vida deixará de dar as suas voltas? acho que não.

o que eu tenho hoje são resíduos, resquícios de ressaca e sequelas

“sofrendo com as calças e tudo” como o parente eunuco já dizia,


e o que quer que isso tenha significado para ele de pés em perpendicular.

durante toda aquela noite de veneno e cobra eu implorava o advento da morte

para, ao menos, dentro dos dois meses subsequentes, eu pudesse acordar,

invariavelmente menor, com um resto de vida e uns versos de circunstância

como esses de agora e me faço então um urso plausível, criando forças para criar

em meio a esse caos de tantas dores e os músculos retesados repuxando no braço

como fosse me virar do avesso, o que faz com que a minha cabeça não consiga

pensar mais e eu lanço tudo no livro das horas, antes de fechar a brochura contábil.

 

“A Solidão Clandestina” foi demais e única companhia, amigo, falecido antes de mim.

“O Himalaia de um Vaso” era alto demais para eu escalar, falecido conterrâneo, e então

eu caía de borco com a cara no meio do barro, palhaço, cheio de livros e dentes partidos.

 

Se ao menos eu tivesse tido, o quanto antes, a droga de um buril e punhais amolados.

 



O TRABALHO DOS DIAS


Não posso dizer da vida

e de sua quantia, pois

não tenho como me reportar

a uma experiência anterior.

 

A vida, em função disto,

talvez seja mais símbolo

e espaço do interdito do

que o vivido propriamente.

 

Refugia-se em mim, no escuro

do verbo existir, a ausência

de sentido num cotidiano

excessivamente meu e nulo.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

IDENTIFICAÇÃO


Identifico-me com a noite

e com o que ela traz

de específico a si mesma,

e assim fazendo, aceito

o convívio de seres opacos

e da nova ordem e estado de coisas

que o escuro inaugura.

Identifico-me com o avesso

sou aliás o próprio avesso de mim,

e assim sendo, conheço

as esquinas sombrias

nas quais se disfarça

a inexorável nulidade.

Volto de manhã para casa,

e num balanço isento da noite

nenhum acréscimo se me acrescentou

de forma permanente.

Voltei eu mesmo sozinho e íntegro,

apesar das concessões necessárias

ao convívio comum entre os homens.

Nada ganhei e também nada de mim

se perdeu, exceto esta vida

que amanhece mais velha.

 


domingo, 17 de novembro de 2024

DA ESSENCIALIDADE DA ÁGUA

 



Trata-se do primeiro original poético do escritor e poeta Milton Rezende nos últimos sete anos, desde a publicação de “Um Andarilho Dentro de Casa”, em 2017. Depois disso aconteceram mais quatro livros publicados, sendo que o primeiro deles foi o romance “Mais uma Xícara de Café – One More Cup of Coffee” (2017), seguido de uma compilação de textos e poemas derivados de sua fortuna crítica: “Tempo de Poesia: Intertextualidade, Heteronímia e Inventário Poético em Milton Rezende”(2015), de Maria José Rezende Campos e que foi publicado em 2019 sob o título de “A Casa Improvisada”, outro foi uma seleção de poemas e textos contemplados, viabilizados e publicados através da Lei Aldir Blanc “Anímica” (2022), em seguida a sua “Antologia Poética – Literária I” (2022), que foi publicada no Brasil, Portugal, Angola e Cabo Verde. Publica o “Da Essencialidade da Água” (2024).


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

DA ESSENCIALIDADE DA ÁGUA

 adquira seu exemplar e prestigie a literatura brasileira contemporânea.

@EditoraSinete

Milton Rezende, escreve em prosa e poesia e conta com quatorze livros publicados. Suas obras têm sido publicadas em diversos blogs, revistas, jornais e sites de literatura no Brasil e alguns no exterior.

Em Da essencialidade da água, o poeta lida com a morte, abordando inquietações provocadas pela contemplação da finitude, em todas as suas camadas, até chegar ao desfecho inegociável. Paradoxalmente, a vida transborda em todos os versos e se fortalece na contemplação das dificuldades provocadas por limitações físicas.

Sobre o autor, Edson Braz da Silva diz: “Grande poeta, de obra densa, intrigante, que não permite a indiferença ou muxoxo quando é lida. Poeta definitivo, que diz o que quer dizer, sem reticências, sem rodeios, porém sem desperdiçar palavras, sem jogar ao ar blasfêmias estéreis, sem pirotecnia. Às vezes é seco como Drummond, tétrico como Edgar Alan Poe, mortal como Augusto dos Anjos, sensitivo como Fernando Pessoa, mas é sempre Milton Rezende.”

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

DA ESSENCIALIDADE DA ÁGUA






 décimo quinto livro do autor Milton Rezende. 

Carla Dias apresenta este recente lançamento da Editora Sinete. adquira seu exemplar e fomente a literatura brasileira contemporânea.

https://www.sineteeditora.com.br/da-essencialidade-da-agua

sábado, 9 de novembro de 2024

A QUEDA


 

Não digo que estou

no fundo do poço

porque este não é mensurável

e sempre se pode cair mais ainda.

Mas estou numa queda livre

e vertiginosa.

A roupa do passado não me serve,

o presente é roto

e estou sem vestes para o futuro.

E numa queda os laços vão-se rompendo,

se dissolvendo,

desagregando-se.

Nenhum laço segura um homem

que cai por muito tempo.

A dignidade é uma palavra para pessoas de pé.

Na horizontal os conceitos são outros.

 



sexta-feira, 8 de novembro de 2024

DIAS DE CHUMBO




DIAS DE CHUMBO

“escurece e não me seduz
tatear sequer uma lâmpada”
Drummond
Minha vontade é me dissolver
destruir minha personalidade.
Se houvesse algum ácido ou sal
que eu pudesse ingerir
e que me libertasse,
não do outro que há em mim
(monstro de ternura e culpa e parte
diferente, ainda que irrisória,
do meu processo de embrutecimento).
Mas que me livrasse de mim mesmo,
da vida que tenho levado até aqui,
aniquilando enfim essa coisa amorfa
que não se sustenta nem se suporta e que
no entanto teme a morte ou o esgotamento
da provisão do seu elemento de fuga.

A Sentinela em Fuga e Outras Ausências, Editora Multifoco, 2011

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

CASA - edição bilíngue


 

Casa [Carlos Drummond de Andrade]


Há de dar para a Câmara,
de poder a poder.
No flanco, a Matriz,
de poder a poder.
Ter vista para a serra,
de poder a poder.
Sacadas e sacadas
comandando a paisagem.
Há de ter dez quartos
de portas sempre abertas
ao olho e pisar do chefe.
Areia fina lavada
na sala de visitas.
Alcova no fundo
sufocando o segredo
de cartas e baús
enferrujados.
Terá um pátio
quase espanhol vazio
pedrento
fotografando o silêncio
do sol sobre a laje,
da família sobre o tempo.
Forno estufado
fogão de muita fumaça
e renda de picumã nos barrotes.
Galinheiro cumprido
À sombra de muro úmido.
Quintal erguido
em rampa suave, flores
convertidas em hortaliça
e chão ofertado ao corpo
que adore conviver
com formigas, desenterrar minhocas,
ler revista e nuvem.
Quintal terminando
em pasto infinito
onde um cavalo espere
o dia seguinte
e o bambual receba
telex do vento.
Há de ter tudo isso
mais o quarto de lenha
mais o quarto de arreios
mais a estrebaria
para o chefe apear e montar
na maior comodidade.
Há de ser por fora azul 1911.
Do contrário não é casa.

[Boitempo I]

 Carlos Drummond de Andrade

 

CASA

(traducción del portugués por Benjamín Valdivia)

 

Ha de dar hacia la Cámara,

de poder a poder.

En el flanco la iglesia mayor,

de poder a poder.

Tener vista a la sierra,

de poder a poder

Balcones y balcones

gobernando el paisaje.

Ha de tener diez habitaciones

de puertas siempre abiertas

a la mirada y al pasar del amo.

Arena fina lavada

en la sala de visitas.

La alcoba en el fondo

sofocando secretos

de cartas y baúles

herrumbrosos.

Con patio

casi español vacío

empedrado,

fotografiando el silencio

del sol sobre la losa,

de la familia sobre el tiempo.

Horno caliente,

fogón de mucha humareda

y un encaje de hollín allá en las vigas.

Gallinero elevado

a la sombra de la pared húmeda.

Jardín que se alza

en rampa suave, flores

convertidas en hortaliza

y suelo ofrecido al cuerpo

que guste convivir

con hormigas, desenterrar lombrices,

leer revista y nube.

Corral que acaba

en pastos infinitos

donde un caballo espere

el día siguiente

y el hato de bambú reciba

telegramas del viento.

Ha de tener todo eso

más el cuarto de la leña

más el cuarto de los arreos

más el establo

donde pueda apear y montar el amo

con la mayor comodidad.

Ha de ser por fuera

azul 1911.

De lo contrario no es la casa.

 


quarta-feira, 18 de setembro de 2024

VIAGEM AO CENTRO DA NOITE


 

ao Airton Ferreira, em memória de nossas noites bêbadas


A noite chegou tão sorrateira que encobriu as casas sem o menor espanto dos que nelas habitavam. Apenas um menino franzino compreendeu as reticências noturnas. Mas ele sempre as compreendia assim, envolto em uma perplexidade medrosa que se intensificava à medida que a tarde ia se dissolvendo. Sempre quando os sinos da igreja matriz anunciavam as já tão rotineiras ave-marias, ele se detinha inquieto e triste. Uma tristeza esquisita, é certo, contudo real e inexplicável como o próprio homem em sua vida diária, equivocada. Seu semblante, agora calmo, escorre toda uma aventura cega, não obstante polvilhada de imagens que se aspiram ser independente do escuro, das faces inertes que a noite perpetuou nas estradas (em cujas porteiras há uma tremenda angústia impregnada em suas tábuas inúteis). Uma vez espalhado o medo é desnecessário tomar este atalho cheirando a capim-gordura, onde se escondem sapos e grilos anulados em si mesmos diante do desengano de uma existência rasteira em que cruzam homens e animais em busca de abrigo, água e comida após um longo dia de trabalho nas lavouras, nas olarias que margeiam o trilho negro por onde corre a civilização embriagada de si mesma ante a edificação de um templo coletivo onde se dará a consumação do próprio vazio, num vazio maior trabalhado na ilusão de se libertarem do nada. Também a vida humana carece de um sentido intrínseco, disse-me a lua no mesmo instante em que estalava no asfalto, dando-lhe um aspecto a um só tempo assassino e suicida. O que é viver acuado diante da própria imagem que se desconhece, por uma pretensa ingenuidade que viria redimir o homem perante sua ignorância de si mesmo e dos objetos que ele julga dominar? Dói em mim uma imensa vontade de chorar toda esta perda. Gritar. Dizer a todos do medo descomedido diante do iniludível que os mortos tão bem o sabem. Buscar consolo, se já não é possível uma explicação, para acontecimentos absurdos como a morte e a perda definitiva da paixão. E o mundo todo se sintetiza em mim que o estou chorando. Mas a voz do silêncio através do hálito da noite me comunica apenas a sua voz de silêncio. Este mesmo silêncio que forma a tessitura das horas onde me perco, pensando em todos aqueles que na simbiose imaginária do momento também estariam olhando através da vidraça o limitado horizonte de nossas vidas destroçadas. E sonhar com esta possibilidade alheia e coletiva é já fazê-la incorporar-se ao meu pranto de homem, que assim se suaviza. A chuva prossegue e com ela o meu intuito de esclarecer a noite ou esclarecer a mim mesmo dentro desta noite que já me escapa. E na solidão ácida deste instante apenas os meus olhos percorrem a vastidão do mundo e o mistério desta pequena cidade que não decifro. Adormeço afinal com os olhos pregados num ponto qualquer de uma memória extracorpo que não tenho e que se tivesse, certamente ali seria o meu refúgio, ainda que não o pudesse alcançar.

 



domingo, 15 de setembro de 2024

TEXTO DE WHISNER FRAGA PARA A ORELHA DE "DA ESSENCIALIDADE DA ÁGUA", LIVRO DE MILTON REZENDE


 

o que o poeta tem a declamar após o coma?, o moto perpétuo da realidade lhe roubando o devaneio e impondo, brutalmente, as sequelas?, o poeta ainda conseguirá criar?, esmiuçará os traumas universais em versos engenhosos?, voltará a escrever?, é imerso nesta angústia, que milton rezende, tateando os aromas da dúvida, tenta recomeçar a tecer uma obra, ainda que o corpo vacile diante da monstruosa tarefa de continuar, é preciso purificar a palavra, em um ato íntimo de desafio: o poeta está afiadíssimo: içou a ironia pelo colarinho, domesticou a dor rediviva, a morbidez da inconsciência, até encontrar lovecraft, até se refugiar em heróis oníricos, fantasmagóricos e, ainda assim, reais: a suspensão da existência, os olhos reavendo outras ficções até desembocarem novamente na trégua, reimaginarem as banalidades cercando a resistência que pulsa, essas águas que jamais foram as mesmas, nunca serão, o líquido ocupa tudo, com seu curso que invade, pilha, toma, ocupa: o poeta tomará quantos remédios por dia?, quantos comprimidos empurrados corpo abaixo?, o poeta regressará às burocracias de antes?, quanto tempo resta antes de se revoltar, novamente?, porque trouxe os vestígios de outra cosmogênese, serenada pelo conforto de fármacos, de injeções, de terapias, uma lista de enfermidades e procedimentos tão absurda que trazem em si o embrião da poesia, o lirismo da incongruência, como enxergar de outra forma o que sempre foi caos?, o médico lhe revelará a intimidade de uma paz sem serventia?, milton rezende aflora às margens de um mundo idílico, transmutado, inacessível e se insurge contra ele com sua realidade brutal, desesperançada, empunhando palavras aceradas, como se só lhe restasse isso a fazer: a arte é um fardo.

 

whisner fraga

 

(*) 0relha do livro “Da Essencialidade da Água”,  publicado pela Editora Sinete, 2024

sábado, 14 de setembro de 2024

A LUA ESCURA


 

 “se soletra L-U-A”

 

sabe,

há um momento

em que a lua

fica escura.

 

é quando,

a escuridão maior

vinda dos montes

cobre a Rua Fácil.

 

e tudo,

vira um só quadro

negro, uma lousa

fria que antecede

a morte.

 



sexta-feira, 13 de setembro de 2024

SINAL DOS TEMPOS


A ponte sobre o rio

morto. Morto

o pássaro no fio

cio sem fonte

de animais extintos.

 

A peste sobre o peixe

ausente. Ausente

as plantas de enfeite

sede sem água

de cobaias em teste.

 

A praga sobre a cidade

atônita. Atônita

a Amazônia em fogo

jogo sem sorte

de árvores indefesas.

 

O prédio sob os escombros

nucleares. Nucleares

os filhos da espécie

prece sem remédio

de homens mutilados.

 

 



quinta-feira, 12 de setembro de 2024

CORPO

 


 

foi preciso

que eu fosse

envelhecendo

para entender

(em parte) o

erotismo tardio

nos poemas de

Drummond.

 

é que precisamos

ir perdendo para

poder reconquistar.

é preciso ir morrendo

pra aprender a gostar

da vida e tentar

(quando não é mais possível)

usufruir da beleza da água

 

que acabou de passar.

 


quarta-feira, 21 de agosto de 2024

NOS LIMITES DA CIDADE


 

Na umidade das pedras

que configuram o fim da rua,

eu deixo a cidade com suas luzes

e embrenho-me no seu depósito de restos

batido pelo silêncio e o desdém dos vivos.

 

Atravesso com passos rápidos

os últimos vestígios onde se respira

e concentra a massa indistinta de seres

que comem carne e habitam em casas para

gerar filhos que conferem um breve hiato

ao fim da espécie que apodrece sob o barro.

 

Minhas botas estalam nas pedras

como o casco de um animal inútil,

e os últimos postes de luz elétrica

escarnecem o meu propósito de deixá-los

para além de sua tarefa de apaziguar

os homens em seu conforto precário.

 

Olho para os lados para certificar-me

de que estou sozinho e então salto sobre

o muro de grades onde repousam os homens

que também comiam carne e geravam os filhos

de uma espécie da qual já não fazem parte.

 

Aqui foram deixados todos aqueles

que um dia não comeram carne e se tornaram inúteis.

E estão esquecidos aqui aonde venho encontrá-los

com seus semblantes de velhos idiotas que acreditavam.

 

Percorro os túmulos que abrigam os mortos

e me detenho nos epitáfios deixados

por parentes que na cidade desprezam estes restos

só pela lembrança de um dia já os terem beijado

na volúpia da carne que agora fede.

 

Antes de deixar o cemitério

e os despojos de carne mal digerida

desses cadáveres abandonados,

eu toco com minhas mãos sem luvas

a massa liquefeita de seus corpos.

 

Depois volto para a cidade

e acaricio os rostos dos filhos

com o excremento fétido de seus pais,

para que eles ainda sem sintam membros

de uma mesma adorável família putrefeita.