quarta-feira, 27 de novembro de 2024

CAMADAS DE ÁGUA

 


“o peixe sabe de tudo e nada”

autoria desconhecida, século XIII

 

tenho dois meses

para morrer

o ódio

me circunscreve

como camadas

de água que vem

inundando tudo,

desde as primeiras células

aos últimos fios de cabelo

e são águas salobras, escuras

de quando faço a descida

da ponte para beber

desta água, o líquido, mas ai,

tem gosto de peixes putrefatos

peixes analógicos e peixes digitais.

 

“São voltas da vida, voltas da vida”,

como dizia o enfermo Valdemar

em seu leito de morte e honradez.

 

lembro de ser abominado pelo meu próprio sangue,

por ser alcoolizado e desistente (“mas eu não sei

porque me sinto assim, vem de repente

um anjo triste perto de mim”). Ah, que merda!

e algumas e diversas era esse o meu mote

para a distração em histórias em quadrinhos

e as primeiras letras e composições em cadernos.

 

sessenta anos, soa o sino em meu tímpano.

 

meu prazo e o peso desta incongruência

dobra-me o pé direito na sandália surrada

“Casa da Eternidade”, que em hebraico se escreve,

bet kevarot, mas já não sou digno de cheirar o ar,

a água límpida, o pensamento puro, inoxidável

 

deverei ficar circunscrito a este cemitério de angu,

atolado até os joelhos junto com as fezes dos porcos

que se procuravam alimentar para o sacrifício final,

num circo fúnebre onde seriam então recheados

com “pêlo de gato, pêlo de um aleijado, chocalho

de cascavel, pés de rã, orelhas de sapo, dentes

de cão e garras de coelho”, para o cardápio da

criança ingênua pensando que ao sair da escola, ah,


e ele pensava, defeituoso e ingênuo das Gerais

“chegando em casa vou pegar uma jantinha”.

 o controle 44 era uma tecla onde soava uma música

em todos os dias (July 28th) e era singela como as

lembranças que não puderam ser nesta (sic) encarnação:

“lembrei de nós, do que ficou, se ficou não vai ter final”.

 

mas antes há de vir o controle 72, do aniquilamento,

da vida quando se torna um fardo pestilento, e eu bato

a cabeça no travesseiro como uma lagartixa inútil, de olhos

arregalados e o estômago e o cérebro entupido de remédios

num quadro consolidado e sem volta, assim como do meu pai.

 

“São voltas da vida, voltas da vida”,

como dizia o enfermo Valdemar

em seu leito de morte e honradez.

 

queria ter a grandeza e a percepção da vida num leito de hospital

para morrer fazendo este balanço isento de que tudo. “são voltas da vida,

voltas da vida”, e no dia seguinte o Sr. Valdemar já não acordava mais.

que venha esta noite, em mim também, ó morte, como num plenilúnio

será que, depois disso, a vida deixará de dar as suas voltas? acho que não.

o que eu tenho hoje são resíduos, resquícios de ressaca e sequelas

“sofrendo com as calças e tudo” como o parente eunuco já dizia,


e o que quer que isso tenha significado para ele de pés em perpendicular.

durante toda aquela noite de veneno e cobra eu implorava o advento da morte

para, ao menos, dentro dos dois meses subsequentes, eu pudesse acordar,

invariavelmente menor, com um resto de vida e uns versos de circunstância

como esses de agora e me faço então um urso plausível, criando forças para criar

em meio a esse caos de tantas dores e os músculos retesados repuxando no braço

como fosse me virar do avesso, o que faz com que a minha cabeça não consiga

pensar mais e eu lanço tudo no livro das horas, antes de fechar a brochura contábil.

 

“A Solidão Clandestina” foi demais e única companhia, amigo, falecido antes de mim.

“O Himalaia de um Vaso” era alto demais para eu escalar, falecido conterrâneo, e então

eu caía de borco com a cara no meio do barro, palhaço, cheio de livros e dentes partidos.

 

Se ao menos eu tivesse tido, o quanto antes, a droga de um buril e punhais amolados.

 



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