“o peixe sabe de tudo e nada”
autoria desconhecida, século XIII
tenho dois meses
para morrer
o ódio
me circunscreve
como camadas
de água que vem
inundando tudo,
desde as primeiras
células
aos últimos fios de
cabelo
e são águas salobras,
escuras
de quando faço a descida
da ponte para beber
desta água, o líquido,
mas ai,
tem gosto de peixes
putrefatos
peixes analógicos e
peixes digitais.
“São voltas da vida,
voltas da vida”,
como dizia o enfermo
Valdemar
em seu leito de morte e
honradez.
lembro de ser abominado
pelo meu próprio sangue,
por ser alcoolizado e
desistente (“mas eu não sei
porque me sinto assim,
vem de repente
um anjo triste perto de
mim”). Ah, que merda!
e algumas e diversas era
esse o meu mote
para a distração em
histórias em quadrinhos
e as primeiras letras e
composições em cadernos.
sessenta anos, soa o sino
em meu tímpano.
meu prazo e o peso desta
incongruência
dobra-me o pé direito na
sandália surrada
“Casa da Eternidade”, que
em hebraico se escreve,
bet kevarot, mas já não
sou digno de cheirar o ar,
a água límpida, o
pensamento puro, inoxidável
deverei ficar
circunscrito a este cemitério de angu,
atolado até os joelhos
junto com as fezes dos porcos
que se procuravam
alimentar para o sacrifício final,
num circo fúnebre onde
seriam então recheados
com “pêlo de gato, pêlo
de um aleijado, chocalho
de cascavel, pés de rã,
orelhas de sapo, dentes
de cão e garras de
coelho”, para o cardápio da
criança ingênua pensando
que ao sair da escola, ah,
e ele pensava, defeituoso e ingênuo das Gerais
“chegando em casa vou
pegar uma jantinha”.
o controle 44 era uma tecla onde soava uma
música
em todos os dias (July 28th)
e era singela como as
lembranças que não
puderam ser nesta (sic) encarnação:
“lembrei de nós, do que
ficou, se ficou não vai ter final”.
mas antes há de vir o
controle 72, do aniquilamento,
da vida quando se torna
um fardo pestilento, e eu bato
a cabeça no travesseiro
como uma lagartixa inútil, de olhos
arregalados e o estômago
e o cérebro entupido de remédios
num quadro consolidado e
sem volta, assim como do meu pai.
“São voltas da vida,
voltas da vida”,
como dizia o enfermo
Valdemar
em seu leito de morte e
honradez.
queria ter a grandeza e a
percepção da vida num leito de hospital
para morrer fazendo este
balanço isento de que tudo. “são voltas da vida,
voltas da vida”, e no dia
seguinte o Sr. Valdemar já não acordava mais.
que venha esta noite, em
mim também, ó morte, como num plenilúnio
será que, depois disso, a
vida deixará de dar as suas voltas? acho que não.
o que eu tenho hoje são
resíduos, resquícios de ressaca e sequelas
“sofrendo com as calças e
tudo” como o parente eunuco já dizia,
e o que quer que isso tenha
significado para ele de pés em perpendicular.
durante toda aquela noite
de veneno e cobra eu implorava o advento da morte
para, ao menos, dentro dos
dois meses subsequentes, eu pudesse acordar,
invariavelmente menor,
com um resto de vida e uns versos de circunstância
como esses de agora e me
faço então um urso plausível, criando forças para criar
em meio a esse caos de
tantas dores e os músculos retesados repuxando no braço
como fosse me virar do
avesso, o que faz com que a minha cabeça não consiga
pensar mais e eu lanço
tudo no livro das horas, antes de fechar a brochura contábil.
“A Solidão Clandestina”
foi demais e única companhia, amigo, falecido antes de mim.
“O Himalaia de um Vaso” era
alto demais para eu escalar, falecido conterrâneo, e então
eu caía de borco com a
cara no meio do barro, palhaço, cheio de livros e dentes partidos.
Se ao menos eu tivesse
tido, o quanto antes, a droga de um buril e punhais amolados.
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