quarta-feira, 18 de setembro de 2024

VIAGEM AO CENTRO DA NOITE


 

ao Airton Ferreira, em memória de nossas noites bêbadas


A noite chegou tão sorrateira que encobriu as casas sem o menor espanto dos que nelas habitavam. Apenas um menino franzino compreendeu as reticências noturnas. Mas ele sempre as compreendia assim, envolto em uma perplexidade medrosa que se intensificava à medida que a tarde ia se dissolvendo. Sempre quando os sinos da igreja matriz anunciavam as já tão rotineiras ave-marias, ele se detinha inquieto e triste. Uma tristeza esquisita, é certo, contudo real e inexplicável como o próprio homem em sua vida diária, equivocada. Seu semblante, agora calmo, escorre toda uma aventura cega, não obstante polvilhada de imagens que se aspiram ser independente do escuro, das faces inertes que a noite perpetuou nas estradas (em cujas porteiras há uma tremenda angústia impregnada em suas tábuas inúteis). Uma vez espalhado o medo é desnecessário tomar este atalho cheirando a capim-gordura, onde se escondem sapos e grilos anulados em si mesmos diante do desengano de uma existência rasteira em que cruzam homens e animais em busca de abrigo, água e comida após um longo dia de trabalho nas lavouras, nas olarias que margeiam o trilho negro por onde corre a civilização embriagada de si mesma ante a edificação de um templo coletivo onde se dará a consumação do próprio vazio, num vazio maior trabalhado na ilusão de se libertarem do nada. Também a vida humana carece de um sentido intrínseco, disse-me a lua no mesmo instante em que estalava no asfalto, dando-lhe um aspecto a um só tempo assassino e suicida. O que é viver acuado diante da própria imagem que se desconhece, por uma pretensa ingenuidade que viria redimir o homem perante sua ignorância de si mesmo e dos objetos que ele julga dominar? Dói em mim uma imensa vontade de chorar toda esta perda. Gritar. Dizer a todos do medo descomedido diante do iniludível que os mortos tão bem o sabem. Buscar consolo, se já não é possível uma explicação, para acontecimentos absurdos como a morte e a perda definitiva da paixão. E o mundo todo se sintetiza em mim que o estou chorando. Mas a voz do silêncio através do hálito da noite me comunica apenas a sua voz de silêncio. Este mesmo silêncio que forma a tessitura das horas onde me perco, pensando em todos aqueles que na simbiose imaginária do momento também estariam olhando através da vidraça o limitado horizonte de nossas vidas destroçadas. E sonhar com esta possibilidade alheia e coletiva é já fazê-la incorporar-se ao meu pranto de homem, que assim se suaviza. A chuva prossegue e com ela o meu intuito de esclarecer a noite ou esclarecer a mim mesmo dentro desta noite que já me escapa. E na solidão ácida deste instante apenas os meus olhos percorrem a vastidão do mundo e o mistério desta pequena cidade que não decifro. Adormeço afinal com os olhos pregados num ponto qualquer de uma memória extracorpo que não tenho e que se tivesse, certamente ali seria o meu refúgio, ainda que não o pudesse alcançar.

 



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