terça-feira, 22 de março de 2022

Comentário sobre o livro Anímica

 

MILTON REZENDE

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Há quatro ou cinco anos, recebi um livro dele e lhe pedi desculpas porque me pareceu muito pesado para o momento que atravessava: o do câncer que acabaria por levar meu filho. Agora, quando emendamos a pandemia à infame guerra da Rússia contra a Ucrânia, amargando um nosso governo que chega a ser sinistro, recebo ANÍMICA, novo livro de MILTON REZENDE – editado pela Penalux – cuja primeira parte, “Coletânea Cemiterial” – abre com o poema “Na Lápide de Augusto dos Anjos", em que se lê que

“seus versos (...) subsistiram aos vermes

que agora me espreitam”.

Minha reação me mostra que meu problema persiste. Dói, ler, em “A sentinela que fica”, que

“Existe uma imensa solidão em mim”.

Mais adiante,  “Velório” me faz engolir em seco:

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“O defunto estava com as mãos cruzadas sobre o peito.

Flores cobriam todo seu corpo e o rosto estava lívido.

Os braços eram demasiado magros e cadavéricos”.

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O efeito Edgar Allan Poe sobre Augusto dos Anjos, fora repassado para Milton Rezende, mesmo sem a linguagem científica e de ritmo contundente do paraibano. Mas... com beleza. Veja este “Poema retirado de uma lápide”:

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“No cemitério de Perdões

Laura Alvarenga descansa.

Moça bonita de 19 anos.

Falecida em 1920.

Sentada numa cadeira,

com um grande laço

de fita nos cabelos

e uns braços que talvez

nem mesmo Machado

sonharia descrever em

seus contos de Assis.

Laura Alvarenga

de 19 anos de idade

e seus olhos de Capitu.

Uma fisionomia pensativa

e meio triste de quem não

antevia a sua própria morte,

que chegaria tão cedo.

Na sua lápide está escrito:

“Saudade eterna de seus Paes

E irmãos. 87 anos depois

eu contemplo a sua fotografia

num livro de pesquisa e penso

que gostaria de tê-la conhecido.

O que sabemos nós da vida?”

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Na segunda parte vêm suas “Poesias traduzidas”. A primeira, curta, é muito bonita:

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ADIAMENTO

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“Trago comigo meus poemas

que ainda não foram escritos,

simplesmente porque não se fizeram

e nem se recolheram à sua impossibilidade.

E vou deixando-os, portanto, para o dia

seguinte, para a manhã seguinte, para

a vida seguinte que não haverá.”

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Augusto dos Anjos volta com tudo em EXPURGO:

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“hoje eu mordi

Um chumaço de

Papel higiênico

Para estancar

( ou tentar conter )

O sangramento

Da língua dilacerada;

Como um cadáver

Antecipado que devora

O seu próprio sudário.”

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Na parte denominada POEMAS SEQUENCIAIS, MILTON REZENDE traça quatro AUTORRETRATOS. Diz, no começo do primeiro:

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“Eu não sou somente

Este rosto jovem

Sou também

Este corpo magro

Estes pulmões doentes

Este ser descrente.”

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No começo do segundo:

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“Eu sou aquele

Que teve de vender

A alma ao diabo

Para ser publicado;

Eu sou aquele

Que teve de vomitar

O próprio sangue

Para se fazer aceitável”

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Fico nesta lembrança d"O Grito", de Munch:

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Há um grito

Em mim

Que não distingo

Do grito

Que ouço além

Da minha surdez”.

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Milton Rezende. Apesar de continuar de luto - pelo filho, pelos ucranianos, pelos brasileiros - e talvez por isso mesmo, desta vez, eu o li. Ainda bem.

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Waldemar José Solha

 

 

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