Da
essencialidade da água
Por Krishnamurti Góes dos Anjos (*)
O
tempo que decorre implacável, sobretudo para aqueles que já passaram de certa
idade, e que se vêm diante de situações aflitivas que comprometem a saúde,
tende a evocar a proximidade da ‘indesejada das gentes’, a morte. Em momentos
tais, se nos dermos à meditações mais detidas e aprofundadas, lembramos dos
entes que nos foram caros, daqueles que de alguma forma partilharam de nossas
vidas. Surge então nas telas da memória a imensa legião dos que já não vivem
entre nós. Vemos-os desfilar com as paixões que os consumiram, com seus ódios,
suas amizades e carinhos, amores, desejos e ambições desvanecidas na poeira do
tempo que passou. E nos perguntamos indignados: Por que tanta vida, pensamento,
inteligência e sentimentos se tudo deve terminar no sepulcro? Em sua carreira,
para onde vai, pois, o homem? Para o nada ou para uma luz desconhecida?
A recente publicação pela novíssima
Editora Sinete da obra “Da essencialidade da água” do escritor Milton Rezende
tem o poder de despertar no leitor os questionamentos acima. Rezende que é
autor de larga experiência no mundo literário com quatorze livros publicados,
surpreende ao reunir no volume poemas escritos em passado recente, aos quais
ironicamente batizou de “uns versos de circunstância”. Poemas que revelam a
difícil situação pela qual passou em decorrência de um derrame isquêmico do
lado direito do corpo que o deixou por meses internado e com graves sequelas. A
obra é plasmada numa espécie de terapia
primal (abordagem psicológica que visa tratar traumas, através da
liberação de emoções reprimidas. Baseia-se num conceito de que as neuroses e as
doenças são causadas por dores reprimidas, e que a solução é reviver essas
dores). Mais do que o simples resgate de emoções reprimidas, que sem dúvida nos
causam sentimentos de empatia e solidariedade, a obra sacode o leitor porque
incita reflexões outras sobre o que pensamos afinal que seja a morte, esse
acontecimento temido e inevitável que a maioria
de nós sequer reflete sobre:
“Em meio a esse caos de tantas dores e os músculos
retesados repuxando / no braço / como se fosse me virar do avesso, o que faz
com que minha cabeça não / consiga / pensar mais eu lanço tudo no livro das
horas, antes de fechar a brochura / contábil.” p.40.
Assim, como bem o
aponta o editor Whisner Fraga em prefácio à obra, o poeta se insurge contra o
mundo de realidade brutal e tenta recomeçar, em meio a limitações, fármacos,
injeções e terapias. Segue tecendo mais uma obra. Ainda que o corpo vacile
diante da monstruosa tarefa de continuar. Não é fácil... Superar a própria dor
física, o sofrimento existencial imposto pelas “voltas da vida”, e ainda assim,
tentar adentrar as camadas mais profundas do ser. Eis a que ponto chegamos
neste nosso mundo em que a fé se extinguiu, o ceticismo e o materialismo tomam
corpos, paixões, e apetites são estimulados, e a mediocridade e a violência
exacerbadas tomam corpo.
O
autor consegue extrair certa beleza melancólica das coisas mais improváveis e
dos fatos mais banais.... Desencanto, na linha de um Carlos Drummond de
Andrade, conterrâneo de Rezende, que aliás figura em vários dos poemas, seja em
epígrafes de versos, seja como revisitações textuais ou ainda aquele certo
“sentimento do mundo”. Sentimento que identifica, e questiona ainda hoje, a
posição do indivíduo em um mundo cada vez mais artificial e tecnológico,
marcado por conflitos, êxodos, guerras e pelo surgimento de armas cada vez mais
letais. Por outro lado, sentimos no filtro da sua subjetividade autoral a busca
de uma esperança para a vida, em meio a essa brutal crise de sentido e de valor
que vivemos presentemente.
Há também a presença do "Horror
Cósmico" criado por Howard Phillips Lovecraft porque o absurdo em que
transformamos o mundo, de tão cruéis convocam a literatura fantástica. Em alguns poemas Rezende envereda por uma
linha fantástica que confronta ideias do iluminismo, cristianismo e do
humanismo, como acontece nos poemas “Quarto 602”, “A marca da besta” e “ A besta
de Gevaudan”.
Mas
também há de se observar que a reação humana
brota em nascentes insuspeitadas de esperança. Aí a “essencialidade da
água.” que nos sugere aquele dito milenar de Heráclito de Éfeso a nos alertar
que “Nenhum homem pode banhar-se duas vezes nas águas do mesmo rio... pois na
segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem!”. Tanto o rio quanto
a pessoa que o atravessa estão em um estado de transformação contínua. Um
aprendizado constante que nos permite entendimento diferente de algo que se
repete. Assim, ao lermos poemas como
“Camadas de água”, “Uma poesia a marteladas”, “Corpo”, “Quando acordei
do coma parece que entrei num pesadelo”, “Disritmia”, “Fogo-fátuo (ignes
fatuus)”, “Visão periférica”, “Ódio II” e
“Versão”, somos instados a amadurecer o nosso senso crítico, a
capacidade analítica e a reinterpretar a vida.
Finalmente. Há neste livro de Milton
Rezende um verso que chama a atenção: “Deus é um conceito pelo qual medimos
nossa dor”. É uma verdade, mas uma verdade que deve ser entendida também pelo
viés daquela arte que só o humano pode executar. Aquela arte mais admirável,
mais sublime e não menos DOLOROSA. A de esculpir-se a si mesmo a cada dia. O
pêndulo da vida e da morte oscila ininterruptamente. O homem, com suas obras,
terá por destino o nada, o olvido? A morte como ainda a entendemos? Será mesmo
a vida o resultado de um acaso estúpido?
Aqueles
que estão cansados de viver como cegos, ignorando-se a si mesmos, aqueles que
não se satisfazem mais com as superficialidades de uma civilização material,
mas que aspiram a uma ordem de coisas mais elevadas precisam continuar a se
‘esculpir’. Não há escapatória para mudar essa dicotomia infeliz. De um lado as
religiões, com o cortejo de radicalismos e interesses escusos, o espírito de
dominação e intolerância. E “ o deus de barro que criaram se esfarela como pó
seco”. Do outro, a ciência e o tecnicismo materialista em seus princípios como
em seus fins, com frias negações e exagerada inclinação para o individualismo.
“A besta do Apocalipse / era bem mais sutil / e se infiltrava / em todas as
camadas / do fazer humano: / relações interpessoais / e políticas. Em tudo a
mesma carnificina. // Olhe ao redor e vislumbre / o caos, as classes, os clãs /
e os dentes incisivos na / carne putrefata.”
Religião
e ciência. Uma a oferecer um paraíso inacessível ou uma eternidade de
suplícios, a outra, o nada absoluto! E os homens se engalfinham, combatem, sem
se poderem vencer, porque cada uma delas corresponde a uma necessidade
imperiosa do ser: uma fala ao coração, a outra dirige-se ao espírito e à razão.
Os sentimentos do humanismo se enfraqueceram, a divisão e o ódio substituíram a
compaixão e a união.
Alguma vez o arremesso ao acaso das
letras do alfabeto produziu um poema? Entregue a si mesma nada pode a matéria.
Só se explica a harmonia do universo que nos cerca pela intervenção de uma
vontade. É pela ação de forças sobre a matéria, pela existência de leis sábias
e profundas, que tal vontade se manifesta na ordem do Universo, que também compõe,
dispõe e acomoda a natureza do Planeta - com que força isto está nos sendo
cobrado atualmente! – a apontar e provar
a existência de um plano. A atividade dos elementos que concorrem para tal
realização denota uma causa oculta, infinitamente sábia e poderosa a que nossa
intuição e consciência dão o nome de Deus.
31/12/2024. Que nos venha um Ano Novo com
muita saúde, paz e luz!
Livro: “Da essencialidade
da água” – Poesias de Milton Rezende, Editora Sinete – São Paulo / SP, 2024,
124 p. ISBN 978-65-997365-9-9
Links para compra e pronto envio: https://www.sineteeditora.com.br/da-essencialidade-da-agua
https://www.facebook.com/milton.rezende.96
(*)
Krishnamurti Góes dos Anjos tem publicados os livros: Il Crime dei Caminho Novo
– Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos,
Embriagado Intelecto e outros contos, Doze Contos & meio Poema, À flor da
pele – Contos e Destinos que se cruzam - Romance. Participou de 30 Coletâneas e
antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Há textos seus
publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá,
México e Espanha. Seu último romance publicado pela editora portuguesa Chiado –
O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso
Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores
UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos
e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a crítica literária,
resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em
diversos jornais, revistas e sites literários.