Outro dia, numa
conversa sobre velhos e asilos, descobri que Rita de C. também é formada em
psicologia e parte do seu encanto vem daí, do volume de conceitos e fundamentos
que possui, como adiposidades sexuais. Um dia ainda pretendo me meter entre
suas nádegas e aprofundar meu conhecimento sobre tatuagens, quando ela estiver
viúva. Antes, em seu consultório, ela me dirá se devo dar um tratamento
literário às minhas patologias ou se devo considerar minha literatura como
patológica.
Francisco foi um tolo quando se
enveredou pelo misticismo como forma de justificar os seus atos. Quis ver em
tudo a mão suave do destino e deu de querer ler e acompanhar seu horóscopo.
Ninguém comete um equívoco sem um motivo transcendental para si mesmo. Chegou
até a colecionar previsões que endossassem suas atitudes, conforme ele me
contou depois. Um dia o encontrei, bêbado e estropiado, com um pedaço de papel
na mão. Uma folha arrancada de um caderno espiral cheia de anotações extraídas
de jornais sobre o seu signo. Cobrem um curto período, não datado, em que ele
diariamente acompanhava e anotava, montando um pequeno texto com vários e
diferentes enxertos dessas previsões que, segundo ele, justificavam plenamente
a decisão a ser tomada. Com isto julgou estar no caminho certo e quebrou a cara
e agora me exibia o papel de sua ruína. Não vejo muita unidade nesse amontoado
de frases e nem posso compreender como alguém possa ter embasado nelas uma
decisão que mudaria o curso da sua vida. Ao invés da mão suave do destino ele
encontrou o braço forte da desgraça. Coisas da vida e azar o dele que não leu A
Cartomante. Transcrevo a seguir, a título de curiosidade, as anotações
astrológicas e zodiacais do meu desafortunado amigo.
“Na vida amorosa ou na profissional,
podem surgir situações de prova ou desafio. Aproveite para treinar sua
capacidade de funcionar sob estresse. Cabeça fria e objetivos definidos serão o
seu escudo. A vitória acompanha quem tem melhor controle sobre si mesmo. Chega
um momento na vida em que não dá mais para preservar as coisas como estão e
que, correndo-se o risco de magoar pessoas ou destruir instituições, é melhor
fazê-lo do que continuar mantendo tudo como está. Tudo está melhor do que
parece, não tenha dúvidas a esse respeito. Todo esse tumulto, que muitas vezes
tem você no epicentro da situação, expressa, na verdade, a mão compassiva do
destino acertando o passo de tudo. Pronto para voar, virar o mundo de pernas
para o ar, se jogar nos braços do seu amor. Impulsos de se libertar, romper
antigos grilhões, tudo aquilo que vem se arrastando há eras. Você está se
abrindo, de lento caracol vira veloz borboleta. Tudo pode ser e acontecer:
link-se com sua alma. Uma decisão arriscada pode ser tomada hoje. Num tema
amoroso, vai funcionar melhor se você der o primeiro passo, agindo de maneira
segura. A surpresa e a segurança do que deseja é que irão garantir que você não
fique falando sozinho. E não seja impulsivo, para não provocar acidentes. Toda
a energia que você precisa para ser feliz está disponível e é absolutamente
gratuita. A vida não exige nada, oferece tudo. Exercite-se na arte de viver sem
depender de objetos ou dinheiro para garantir felicidade. Quando a mente fica
cheia de preocupações é mais difícil perceber os detalhes belos da vida. As
preocupações podem até ser reais, mas nada obriga você a se prolongar nelas.
Passe por elas o mais rapidamente possível. Dúvidas e incertezas do futuro,
como será o amanhã? É, pode ser difícil mover-se em chão desconhecido, trilhar
a imprevisibilidade, mas se você der uma boa olhada em sua história até aqui,
verá que não é a primeira vez que coisas muito boas aconteceram e que você se
descobriu mais forte quando a vida o surpreendeu. É imperioso que você renasça
das cinzas daquilo que se acostumou a chamar de ‘sua vida’. De fato, ela não
mais existe, é apenas uma reminiscência. A morte não é tragédia, é oportunidade
de transformar tudo em algo melhor”.
Tendo passado muitos dias deitado
debaixo da cama a contemplar os estrados de madeira sob os colchões, penso que
a essa altura eu já não passo de um rato emotivo. Preciso me dispor a levantar
para trabalhar ou morrer ou morrer de trabalhar, o que para mim pouco importa, uma
vez que sinto a obrigação de sair daqui com urgência. Quando me refugiei era um
paraíso, mas um paraíso momentâneo como logo percebi. Com o passar do tempo
comecei a descobrir estragos na madeira do estrado. Nódulos, cerne podre,
pregos amassados e entortados de qualquer maneira. Também o colchão apresenta
bolor aqui e ali e isso já me irrita assim como as teias de aranha e a sujeira
que se acumula debaixo dos móveis. Me sinto só e vazio, mas se passo para a
parte de cima da cama, sobre os colchões, aí então a minha solidão parece que
se escancara, fico desprotegido do mundo, com o vento a zunir em minhas orelhas.
Um rato emotivo coberto de fuligem, cheio de medos e vertigens, eis o que sou.
Num paroxismo de pavor, salto de debaixo da cama e já me vejo numa velha
estrada de terra vermelha que afinal desemboca no quintal da minha infância.
Acho que fui, sem o saber, uma das
vítimas de Fausto. Aquele vampiro de almas, acho que me sugou, pois me sinto
vazio como um morto-vivo, um fantasma cujo reflexo é apenas uma sombra no
espelho das águas turvas de um tanque que se romper um dia poderá destruir toda
uma cidade inteira. Percebo que o meu caso é grave na medida em que não
compartilho o convívio dos mortos nem tampouco sou notado pelos vivos e, com
certeza, esse é o fim das vítimas de Fausto.
Agora sou um peixe sem alma. Olho-me
no espelho e vejo uma cara de peixe coberta de escamas. Um peixe feio, mais
redondo que comprido, que outrora habitava o fundo do lago Baikal e que hoje
chapinha nas poças de água barrenta formada pelos cascos dos animais que chegam
às margens do tanque para saciar sua sede e deixam pegadas que logo são
invadidas pelas águas adjacentes, como uma extensão desse tanque cujo formato é
de um mapa invertido.
Não me lembro de ter conhecido esse
tal de Fausto, mas certamente nos encontramos em algum desses bares que eu
freqüentava antes de transformar-me neste misto de rato e peixe que ora se
esconde debaixo da cama, ora se chafurda na lama formada pelos cascos dos bois
da antiga fazenda onde se pescava.
O Fausto “comprou” a minha história
de vida. Uma história banal é verdade, mas era minha e era a única que eu
tinha. Hoje me encontro vazio e já faz muitos anos que não escrevo um poema. É,
deve ter sido isso. E o canalha não me pagou nada.
Milton Rezende, in “Textos e Ensaios”, 2021, Prosa, Milton
Rezende
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