segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

DA ESSENCIALIDADE DA ÁGUA


 

Da essencialidade da água

 

Por Krishnamurti Góes dos Anjos (*)

 

O tempo que decorre implacável, sobretudo para aqueles que já passaram de certa idade, e que se vêm diante de situações aflitivas que comprometem a saúde, tende a evocar a proximidade da ‘indesejada das gentes’, a morte. Em momentos tais, se nos dermos à meditações mais detidas e aprofundadas, lembramos dos entes que nos foram caros, daqueles que de alguma forma partilharam de nossas vidas. Surge então nas telas da memória a imensa legião dos que já não vivem entre nós. Vemos-os desfilar com as paixões que os consumiram, com seus ódios, suas amizades e carinhos, amores, desejos e ambições desvanecidas na poeira do tempo que passou. E nos perguntamos indignados: Por que tanta vida, pensamento, inteligência e sentimentos se tudo deve terminar no sepulcro? Em sua carreira, para onde vai, pois, o homem? Para o nada ou para uma luz desconhecida?

A recente publicação pela novíssima Editora Sinete da obra “Da essencialidade da água” do escritor Milton Rezende tem o poder de despertar no leitor os questionamentos acima. Rezende que é autor de larga experiência no mundo literário com quatorze livros publicados, surpreende ao reunir no volume poemas escritos em passado recente, aos quais ironicamente batizou de “uns versos de circunstância”. Poemas que revelam a difícil situação pela qual passou em decorrência de um derrame isquêmico do lado direito do corpo que o deixou por meses internado e com graves sequelas. A obra é plasmada numa espécie de  terapia primal (abordagem psicológica que visa tratar traumas, através da liberação de emoções reprimidas. Baseia-se num conceito de que as neuroses e as doenças são causadas por dores reprimidas, e que a solução é reviver essas dores). Mais do que o simples resgate de emoções reprimidas, que sem dúvida nos causam sentimentos de empatia e solidariedade, a obra sacode o leitor porque incita reflexões outras sobre o que pensamos afinal que seja a morte, esse acontecimento temido  e inevitável que a maioria de nós sequer reflete sobre:   

“Em meio a esse caos de tantas dores e os músculos retesados repuxando / no braço / como se fosse me virar do avesso, o que faz com que minha cabeça não / consiga / pensar mais eu lanço tudo no livro das horas, antes de fechar a brochura / contábil.” p.40.

            Assim, como bem o aponta o editor Whisner Fraga em prefácio à obra, o poeta se insurge contra o mundo de realidade brutal e tenta recomeçar, em meio a limitações, fármacos, injeções e terapias. Segue tecendo mais uma obra. Ainda que o corpo vacile diante da monstruosa tarefa de continuar. Não é fácil... Superar a própria dor física, o sofrimento existencial imposto pelas “voltas da vida”, e ainda assim, tentar adentrar as camadas mais profundas do ser. Eis a que ponto chegamos neste nosso mundo em que a fé se extinguiu, o ceticismo e o materialismo tomam corpos, paixões, e apetites são estimulados, e a mediocridade e a violência exacerbadas tomam corpo.

O autor consegue extrair certa beleza melancólica das coisas mais improváveis e dos fatos mais banais.... Desencanto, na linha de um Carlos Drummond de Andrade, conterrâneo de Rezende, que aliás figura em vários dos poemas, seja em epígrafes de versos, seja como revisitações textuais ou ainda aquele certo “sentimento do mundo”. Sentimento que identifica, e questiona ainda hoje, a posição do indivíduo em um mundo cada vez mais artificial e tecnológico, marcado por conflitos, êxodos, guerras e pelo surgimento de armas cada vez mais letais. Por outro lado, sentimos no filtro da sua subjetividade autoral a busca de uma esperança para a vida, em meio a essa brutal crise de sentido e de valor que vivemos presentemente.

            Há também a presença do "Horror Cósmico" criado por Howard Phillips Lovecraft porque o absurdo em que transformamos o mundo, de tão cruéis convocam a literatura fantástica.  Em alguns poemas Rezende envereda por uma linha fantástica que confronta ideias do iluminismo, cristianismo e do humanismo, como acontece nos poemas “Quarto 602”, “A marca da besta” e “ A besta de Gevaudan”.

Mas também há de se observar que a reação humana  brota em nascentes insuspeitadas de esperança. Aí a “essencialidade da água.” que nos sugere aquele dito milenar de Heráclito de Éfeso a nos alertar que “Nenhum homem pode banhar-se duas vezes nas águas do mesmo rio... pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem!”. Tanto o rio quanto a pessoa que o atravessa estão em um estado de transformação contínua. Um aprendizado constante que nos permite entendimento diferente de algo que se repete. Assim, ao lermos poemas como  “Camadas de água”, “Uma poesia a marteladas”, “Corpo”, “Quando acordei do coma parece que entrei num pesadelo”, “Disritmia”, “Fogo-fátuo (ignes fatuus)”, “Visão periférica”, “Ódio II” e  “Versão”, somos instados a amadurecer o nosso senso crítico, a capacidade analítica e a reinterpretar a vida.

            Finalmente. Há neste livro de Milton Rezende um verso que chama a atenção: “Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor”. É uma verdade, mas uma verdade que deve ser entendida também pelo viés daquela arte que só o humano pode executar. Aquela arte mais admirável, mais sublime e não menos DOLOROSA. A de esculpir-se a si mesmo a cada dia. O pêndulo da vida e da morte oscila ininterruptamente. O homem, com suas obras, terá por destino o nada, o olvido? A morte como ainda a entendemos? Será mesmo a vida o resultado de um acaso estúpido?

Aqueles que estão cansados de viver como cegos, ignorando-se a si mesmos, aqueles que não se satisfazem mais com as superficialidades de uma civilização material, mas que aspiram a uma ordem de coisas mais elevadas precisam continuar a se ‘esculpir’. Não há escapatória para mudar essa dicotomia infeliz. De um lado as religiões, com o cortejo de radicalismos e interesses escusos, o espírito de dominação e intolerância. E “ o deus de barro que criaram se esfarela como pó seco”. Do outro, a ciência e o tecnicismo materialista em seus princípios como em seus fins, com frias negações e exagerada inclinação para o individualismo. “A besta do Apocalipse / era bem mais sutil / e se infiltrava / em todas as camadas / do fazer humano: / relações interpessoais / e políticas. Em tudo a mesma carnificina. // Olhe ao redor e vislumbre / o caos, as classes, os clãs / e os dentes incisivos na / carne putrefata.”

Religião e ciência. Uma a oferecer um paraíso inacessível ou uma eternidade de suplícios, a outra, o nada absoluto! E os homens se engalfinham, combatem, sem se poderem vencer, porque cada uma delas corresponde a uma necessidade imperiosa do ser: uma fala ao coração, a outra dirige-se ao espírito e à razão. Os sentimentos do humanismo se enfraqueceram, a divisão e o ódio substituíram a compaixão e a união.

            Alguma vez o arremesso ao acaso das letras do alfabeto produziu um poema? Entregue a si mesma nada pode a matéria. Só se explica a harmonia do universo que nos cerca pela intervenção de uma vontade. É pela ação de forças sobre a matéria, pela existência de leis sábias e profundas, que tal vontade se manifesta na ordem do Universo, que também  compõe, dispõe e acomoda a natureza do Planeta - com que força isto está nos sendo cobrado atualmente!  – a apontar e provar a existência de um plano. A atividade dos elementos que concorrem para tal realização denota uma causa oculta, infinitamente sábia e poderosa a que nossa intuição e consciência dão o nome de Deus.

  31/12/2024. Que nos venha um Ano Novo com muita saúde, paz e luz!

Livro: “Da essencialidade da água” – Poesias de Milton Rezende, Editora Sinete – São Paulo / SP, 2024, 124 p.  ISBN 978-65-997365-9-9

Links para compra e pronto envio:  https://www.sineteeditora.com.br/da-essencialidade-da-agua

https://www.facebook.com/milton.rezende.96

(*) Krishnamurti Góes dos Anjos tem publicados os livros: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos, Doze Contos & meio Poema, À flor da pele – Contos e Destinos que se cruzam - Romance. Participou de 30 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Há textos seus publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último romance publicado pela editora portuguesa Chiado – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.  

domingo, 8 de dezembro de 2024

POEMAS DE EDSON BRAZ DA SILVA


OCASO


 O caso é o seguinte:

o caos não chegou por

acaso.

 

ROTINA


A gente se acostuma
contudo

não deveria.

 

ARCANO


Mergulho nas águas profundas e turvas sem me molhar
Submerso em meus temores e pesadelos, não expiro o
ar de meus pulmões prestes a explodir

Não há peixes, cavalos marinhos ou algas
Não há carcaças de navios piratas naufragados
Não há sequer tubarões famintos ou polvos abobalhados


Há apenas trevas teimando em ser cada vez mais trevas
O sol e o céu azul, a lua e as estrelas
os sons, as vozes, as canções – Onde estão?

Sou carreado por correntes marinhas que, por sua vez,
não me levam a lugar algum, embora me arrastem
Tento me recordar do que deixei alhures, mas tudo


se esvaiu como a fumaça de meu último cigarro
e o gole de minha derradeira aguardente. Não amei
mulher alguma a ponto de sentir saudade, apenas tesão

Minha tentativa de pronunciar algo nesse momento solene se torna
borbulhas de ar, o que é muito mais do que as anteriores, cujas
palavras se perdiam no vazio, invisíveis, inaudíveis, ininteligíveis

As vozes que já ouvi tentam em vão me dizer algo, mas nada
remanesceu de tudo o que escutei e tampouco de tudo o que falei
Devo estar chorando, mas como saber, submerso e impermeável?

 

Indefeso e indeciso, rompo em braçadas e pernadas rumo a
um lugar que cintila ante meu olhar de louco, ou de peixe
morto... e meus pulmões prestes a explodir.

 

O AUTOR:

 

Edson Braz nasceu em Juiz de Fora/MG, em 22/10/1957. Cursou, sem concluir, Letras e Psicologia. Publicou trabalhos em jornais alternativos e antologias, destacando Banco de Talentos-2001 (FEBRABAN) e Poesia em Movimento-2002 (FUNALFA). Publicou POEMA(S) EM VÃO, Ed. Scortecci, em 1989, o livro de contos O TOMBO E OUTROS ACIDENTES (Editora Penalux), em 2013, e o romance QUEDA LIVRE (Big Time Editora), em 2016. Tem um romance e uma coletânea de textos em fase de conclusão, além de poesias “engavetadas”, como se dizia noutros tempos, projetos que pretende concluir até o próximo lockdown. Faleceu dia 13/12/2020, por covid19.

 

 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

BOTÂNICA E AS VARIAÇÕES DA FLOR

 


botão de ouro

primavera

dente-de-leão

rosa

ervilha

cicuta-menor

campainha azul

dulcamara

orquídea

junquilho

narciso

lírio amarelo

flor-de-lis

sépalas

pétalas

androceu

gineceu

ela e eu.