ao Airton Ferreira, em memória de nossas noites bêbadas
A noite chegou tão sorrateira que encobriu as casas sem o
menor espanto dos que nelas habitavam. Apenas um menino franzino compreendeu as
reticências noturnas. Mas ele sempre as compreendia assim, envolto em uma
perplexidade medrosa que se intensificava à medida que a tarde ia se
dissolvendo. Sempre quando os sinos da igreja matriz anunciavam as já tão
rotineiras ave-marias, ele se detinha inquieto e triste. Uma tristeza esquisita,
é certo, contudo real e inexplicável como o próprio homem em sua vida diária,
equivocada. Seu semblante, agora calmo, escorre toda uma aventura cega, não
obstante polvilhada de imagens que se aspiram ser independente do escuro, das
faces inertes que a noite perpetuou nas estradas (em cujas porteiras há uma
tremenda angústia impregnada em suas tábuas inúteis). Uma vez espalhado o medo
é desnecessário tomar este atalho cheirando a capim-gordura, onde se escondem
sapos e grilos anulados em si mesmos diante do desengano de uma existência
rasteira em que cruzam homens e animais em busca de abrigo, água e comida após
um longo dia de trabalho nas lavouras, nas olarias que margeiam o trilho negro
por onde corre a civilização embriagada de si mesma ante a edificação de um
templo coletivo onde se dará a consumação do próprio vazio, num vazio maior
trabalhado na ilusão de se libertarem do nada. Também a vida humana carece de
um sentido intrínseco, disse-me a lua no mesmo instante em que estalava no
asfalto, dando-lhe um aspecto a um só tempo assassino e suicida. O que é viver
acuado diante da própria imagem que se desconhece, por uma pretensa ingenuidade
que viria redimir o homem perante sua ignorância de si mesmo e dos objetos que
ele julga dominar? Dói em mim uma imensa vontade de chorar toda esta perda.
Gritar. Dizer a todos do medo descomedido diante do iniludível que os mortos
tão bem o sabem. Buscar consolo, se já não é possível uma explicação, para
acontecimentos absurdos como a morte e a perda definitiva da paixão. E o mundo
todo se sintetiza em mim que o estou chorando. Mas a voz do silêncio através do
hálito da noite me comunica apenas a sua voz de silêncio. Este mesmo silêncio
que forma a tessitura das horas onde me perco, pensando em todos aqueles que na
simbiose imaginária do momento também estariam olhando através da vidraça o
limitado horizonte de nossas vidas destroçadas. E sonhar com esta possibilidade
alheia e coletiva é já fazê-la incorporar-se ao meu pranto de homem, que assim
se suaviza. A chuva prossegue e com ela o meu intuito de esclarecer a noite ou
esclarecer a mim mesmo dentro desta noite que já me escapa. E na solidão ácida
deste instante apenas os meus olhos percorrem a vastidão do mundo e o mistério
desta pequena cidade que não decifro. Adormeço afinal com os olhos pregados num
ponto qualquer de uma memória extracorpo que não tenho e que se tivesse,
certamente ali seria o meu refúgio, ainda que não o pudesse alcançar.