“Ontem, à meia-noite, estando junto
a uma igreja, lembrei-me de ter visto
um velho que levava às costas isto:
um caixão de defunto”.
Alphonsus de Guimaraens (1870-1921).
Por Milton Rezende
Depois de muitos
anos,
tentando ainda
me livrar
das marcas do
passado
fui ao cemitério
retirar
os ossos do meu
amigo.
Lembro-me de ter
deixado
uma pedra em
formato de
concha, sob a
qual estavam
os seus objetos
pessoais e
toda a minha
lembrança.
Era meia-noite
no relógio
da igreja e um
velho sentado
cochilava com a
sua carcaça
de quem estava
prestes a partir
e abandonar de
vez a praça.
Antes, porém,
seria necessário
àquele velho
feio e deformado
atravessar a
ponte de concreto
armado e
alcançar o outro lado,
onde não havia
nada além do pátio.
Surpreendi o
velho em sua travessia
quando eu vinha
vindo em sentido
contrário e
voltando dos bares que
estavam situados
na margem oposta,
onde a vida era
só queixa e desamparo.
O homem trazia
em suas costas
uma caixa de
madeira envernizada
e cheia de alças
de metal dourado,
semelhante aos
caixões que eu via
expostos na
porta da casa funerária.
E perguntei-lhe,
já meio bêbado,
o que ele
carregava nas costas
e se era pesado
– disse-me então
e sem olhar para
o meu lado,
que ia levando
apenas o seu leito.
De súbito,
ocorreu-me o fato
e a lembrança
que me levara ali:
desenterrar os
restos mortais
do meu amigo,
depois de passados
alguns anos,
conforme combinado.
Mas não sei se
fui ao lugar errado:
o certo é que
encontrei apenas,
na escuridão da
casa dos mortos,
somente uma
velha caixa de amianto
e pedaços de
tubos galvanizados.
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